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O Sistema de Justiça brasileiro “tem como política a blindagem das elites e a criminalização dos pobres”  - Entrevista com Luciana Zaffalon
AN Original
2019-06-27
Por Jessica Morris, Luciana Zaffalon Leme Cardoso

Em entrevista a Jessica Carvalho Morris, Luciana Zaffalon, ativista de direitos humanos, formada em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestra e doutora em administração pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas, apresenta o projeto Justa que foi lançado em São Paulo no dia 11 de junho de 2019.

O que é o Justa e como surgiu?
O Justa é um projeto de pesquisa que apresenta seus resultados em uma plataforma interativa que busca facilitar o acesso a dados e a compreensão de temas tão complexos quanto fundamentais para nosso desenho democrático.

O projeto unifica, organiza e descomplica grandes bancos de dados do orçamento público, do legislativo e do Sistema de Justiça, buscando entender como as disputas orçamentárias travadas pelas carreiras jurídicas impactam a separação entre os três poderes.

No Brasil, é na esfera estadual que se concentram as políticas de segurança pública e a justiça criminal, âmbitos nos quais a responsabilização do estado por eventuais violações precisa de maior atenção. Esse é o foco da pesquisa, sediada no IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e realizada em parceria com a Open Knowledge Brasil, que desenvolveu a tecnologia do projeto.

O Justa é um projeto coletivo que teve como ponto de partida minha tese de doutorado, que demonstra como a demanda das carreiras jurídicas por cada vez mais recursos públicos cria uma dinâmica de negociação orçamentária permanente entre os três poderes que compromete radicalmente a independência judicial.

No Brasil, juízes, promotores de justiça e defensores públicos estão entre as 0,08% pessoas mais ricas do país e as disputas orçamentárias para pagamento dessa riqueza pelos cofres públicos tem impactado de maneira perversa nossa democracia.

Faz parte da estratégia do Justa diversificar e descomplicar a comunicação dos resultados da pesquisa, daí a aposta na interatividade da plataforma digital e no desenvolvimento de produtos como uma animação: http://bit.ly/JUSTA_Video

O Justa indica que toda sua pesquisa é permeada por um olhar atento a questões de gênero e raça. Quais são os primeiros resultados da pesquisa e o que eles revelam com relação a essas duas questões?
Na população brasileira, a proporção entre os dois sexos é praticamente equilibrada (51% mulheres e 49% homens). A proporção de mulheres cresce entre as pessoas com ensino superior: entre as pessoas que concluíram a universidade 56% são mulheres e 44% são homens. No entanto, entre juízes a maioria é do sexo masculino: 60% são homens. A desigualdade é ainda maior na progressão da carreira, quando olhamos para os cargos de desembargadores (magistrados de segunda instância, que atuam no Tribunal e ocupam os cargos de direção do Poder Judiciário): apenas 23% são mulheres e 77% são homens.

Para cada mulher negra no brasil, há 0,9 homens brancos, mas para cada juíza negra, há 7,4 juízes brancos e para cada desembargadora negra, há 33,5 desembargadores brancos. Na prática, homens brancos têm 37,8 vezes mais chances que mulheres negras de se tornarem desembargadores e assim se converterem em gestores do Poder Judiciário.

A população negra e as mulheres estão sub-representadas na magistratura de todos os estados brasileiros e os resultados nos mostram que os marcadores de raça e gênero limitam determinantemente não apenas o ingresso na carreira, mas também a ascensão às posições de comando do Poder Judiciário.

O Justa faz um levantamento sobre o orçamento do Poder Judiciário e o contrapõe ao orçamento destinado ao sistema prisional, seus egressos e às políticas de segurança pública. Quais são os principais achados e o que eles mostram?
De 2013 a 2018 o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) consumiu, em média, 5% do orçamento anual do estado. A título de ilustração, o Justa selecionou 10 funções de inegável importância que somadas não alcançaram o valor recebido pelo TJSP em 2018 - o Tribunal sozinho recebeu mais do que a soma dos valores destinados a: assistência social, habitação, saneamento, direitos da cidadania, trabalho, ciência e tecnologia, gestão ambiental, energia, desporto, lazer e comunicações. Quando comparamos os valores destinados a políticas públicas voltadas a egressos do sistema prisional as diferenças são ainda mais brutais. Em 2018 os egressos receberam menos de 1 milhão de reais, enquanto o Tribunal ficou com mais de 12,4 bilhões de reais, sendo que 79% desse valor foi gasto com pagamento de pessoal e respectivos encargos.

O mesmo pode ser dito com relação a tribunais de dois outros estados brasileiros, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) e Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), que no mesmo período consumiram em média, respectivamente, 6% e 4,3% dos orçamentos anuais dos estados, sendo que 70% dos recursos do TJPR e 92% dos do TJCE foram gastos com pagamento de pessoal.

A comparação entre o orçamento destinado ao Tribunal e às políticas voltadas a egressos prisionais no Ceará também nos leva a comparar bilhão com milhão: em 2018, aos egressos foi destinado 1,5 milhão e ao TJCE 1,2 bilhões.

Tanto nas Leis Orçamentárias do Paraná quanto nas prestações de contas do Estado não foi possível localizar sequer um real destinado a políticas voltadas a egressos. Em 2018, o TJPR recebeu mais de R$ 2,7 bilhões.

A partir da análise desses dados, qual é o impacto que as questões orçamentárias, de gênero e raça do Sistema de Justiça tem na democracia brasileira?
Os resultados da pesquisa ganham ainda mais relevância quando consideramos que o Brasil é o segundo país com maior concentração de renda no 1% mais rico do país e observamos que nossos juízes, promotores e defensores públicos estão exatamente nessa faixa da população.

A negociação orçamentária mantida entre Executivo, Legislativo e Sistema de Justiça é o que garante os padrões remuneratórios observados nas carreiras jurídicas e concluímos que a existência de freios e contrapesos é praticamente ausente diante dessa dinâmica, o que se verifica sobretudo frente à repercussão da conjugação das práticas da política convencional com as demandas corporativas da justiça.  

Temos a terceira maior população prisional do mundo e mais de 65 mil homicídios por ano, sendo 75,5% das vítimas negras. A violência de Estado atinge níveis cada vez mais alarmantes e o número de pessoas mortas pela polícia não deixa de crescer mesmo quando o número geral de homicídios diminui.

A gestão pública deve ser analisada tanto pelo fazer quanto pelo não fazer e a responsabilização do Estado pelas violações evidentemente não se configura como prioridade do tão racista quanto patriarcal sistema de justiça brasileiro, que tem como política a blindagem das elites e a criminalização dos pobres. 

Os benefícios garantidos às carreiras jurídicas servem à salvaguarda da sociedade civil íntima, criam blindagens, garantem proteção diante de poderes concorrentes. De outro lado, às classes populares, à sociedade civil incivil, se reservam as periferias, a prisão ou a morte.


Jessica Morris é Doutoranda em Direitos Humanos em Sociedades Contemporaneas (CES). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Juris Doctor pela University of Miami (EUA). Foi Coordenadora dos Programas de Mestrados em Direito Internacional da Faculdade de Direito da University of Miami (EUA) e professora de Direito Constitucional Americano bem como de Direito Internacional dos Direitos Humanos na mesma universidade por oito anos. Também lecionou na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas o curso Human Rights from a Global South Perspective como professora visitante. Proferiu palestras em universidades no Brasil, Argentina, Panamá, EUA, México, Rússia, Azerbaijão, Turquia, dentre outros. Foi Diretora Executiva da Conectas Direitos Humanos (Brasil), Procuradora do Trabalho (Field Attorney, National Labor Relations Board, EUA) e advogada no escritório internacional Greenberg Traurig (EUA). Além disso, participa ativamente das atividades da Anistia Internacional e integrou o Conselho Deliberativo da Anistia Internacional dos EUA por seis anos, chegando a assumir a posição de vice-presidente. Foi a primeira mulher latina a ocupar essa posição. Atualmente integra o Conselho Consultivo da mesma organização. Sua experiência profissional abrange as seguintes áreas: Direitos Humanos, Direito Internacional, Direito Constitucional, Pedagogia Jurídica Internacional e Prática Transnacional do Direito.