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Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
Brasil: O Moinho de Gastar Gente
AN Original
2019-04-16
Por Rafael dos Santos da Silva

Na sua obra mais famosa “O Povo Brasileiro1” Darcy Ribeiro criou o clichê “moinho de gastar gente”. Lá, ao tratar da formação e do sentido do Brasil a expressão ganhou relevo pela força explicativa da realidade. Aqui, mostra-se ainda muito atual e vai ganhando contornos de teoria. Isso por que segundo o Reporty Word Bank of the Poverty in Brazil, em 2018 conseguimos reverter à experiência exitosa de combate a pobreza no período de 2003 a 2014.

Nesse intervalo, diversos indicadores apontavam para a superação da pobreza e da saída do mapa da fome. Mesmo com estratégias questionáveis sob o ponto de vista da sustentabilidade, assistiu-se no principal país latino-americano uma queda do GINI2 de 06,6 para 05,1 pontos3. O nível econômico dos 40% mais pobres foi incrementado em 7,1% obtendo ganhos reais em relação ao todo da população4. O nível de desemprego no final desse ciclo conheceu o menor patamar histórico, abaixo de 5%. Até Janeiro de 2016, organismos oficiais5 revelavam que os dados de pessoas em situação de pobreza extrema eram residuais, abaixo de 3%.

Contudo, uma verdadeira elite de rapina profundamente incomodada com o quadro acima tratou de acionar o velho moinho que a muito não funcionava. Buscou realinhar seus discursos com vistas a recuperar o projeto de concentração de renda e riqueza. Tais abutres sabiam, porque ajudaram a construir, do insustentável modelo de inclusão baseado no consumo e logo tramaram para minar a credibilidade do seu principal articulador e assim desconstruir a um só turno a estrada e o mentor do fim do ciclo da pobreza.
Hoje, apenas três anos de funcionamento o velho moinho já apresenta alguns resultados na sua tarefa de gastar gente. Segundo o mesmo relatório do Banco Mundial 26,5% da população brasileira6 é afetada por algum nível de pobreza, o mesmo patamar de países que enfrentam graves instabilidades políticas como a Venezuela ou graves conflitos territoriais como a Lituânia. Nesse mesmo texto, é aviltante ver a retomada da pobreza extrema7. Segundo a linha da pobreza desenhada pelo Banco Mundial, a pobreza extrema deixou de ser residual8, para condenar a 6.406.970 pessoas. Tal “feito” somente repetido por países localizados na África Sub-Sahariana.

QUAL A PRINCIPAL FONTE DE ENERGIA DO MOINHO?

Antes de responder a fonte geradora desse mal, convém denunciar quem está a frente desse projeto horrendo de gastar gente. A resposta não poderia ser outra senão a elite rentista que no dizer de Jessé Sousa9 move-se em função de uma subcidadania mantenedora do atraso coletivo para dela fazer seu trampolim social. Tal impulso é na perspectiva do autor a própria reprodução da desigualdade que historicamente aparelhou parte da elite cultural como fiel seguradora capaz de sequestrar a política e a democracia. Somente numa sociedade escondida na subcidadania é possível conviver com o fascismo e a democracia. Sendo que o primeiro é a expressão social mais latente e a segunda é reduzida a mera função de verniz do processo10.

Tendo esse ponto de fundo agora é possível ao leitor compreender quais os instrumentos que movem o moinho. Pois bem, o aparelhamento da politica fiscal e tributária é a mais tradicional delas. Isso promove desigualdade na renda e contribui para matizar as distancias de gênero e raça. Atrelado a isso, tem-se que diversos empreendimentos conseguem transferir para suas contabilidades as riquezas coletivas que poderiam facilmente solucionar nossos problemas sociais.

Somam-se a isso as políticas de desoneração fiscal que desde 2014, quando foi aprofundada, alcança um prejuízo de mais de R$ 400 bilhões. Por outro lado, tem-se as políticas de endividamento público11 a afetar negativamente a produção e o consumo. Claro que problemas externos como a queda dos preços das commodities12 associada a inoperância dos governos agravam o problema.

Como consequência direta, o consumo das famílias, principal estratégia de mobilidade social usada nos anos 2000, tornou-se sem efeito em função da política de juros do governo. Outro fato inevitável é a redução do Estado enquanto agente indutor do processo sustentável. Dados do “não comunista” World Bank, atesta que a redução dos níveis das matrículas na educação básica regressou aos níveis de 2013. A média de investimento em saúde em 2024 deve ser reduzida substancialmente saindo dos atuais R$ 519, podendo chegar a R$ 47813 per capta, quando o necessário seria R$ 632 por pessoa. Os gastos em Educação que em 2017 era de 18% da receita corrente liquida, vai chegar em 2025 abaixo dos 15%, e em 2035 com menos de 11%14. Para fechar o cerco aos pobres o “Moinho” quer triturar um conjunto de reformas na previdência retirando-lhes o caráter solidário. O mercado de trabalho brasileiro foi reduzido a pó! Segundo o IBGE15 mas de 50 milhões de brasileiros estão na informalidade, outros 13 milhões amargam o desemprego, mesmo a despeito da nossa taxa de produção industrial manter-se elevada quando considerado os níveis de CO216.

Em outras palavras, a principal fonte de energia do moinho é a gente brasileira que feito bagaço da cana de açúcar empresta seus corpos para ver a roda girar.

COMO PARAR O MOINHO?

Ainda há Saída! Mas para isso é preciso lembrar aquilo que Castel17 arguiu “o que se denuncia não é tanto o que o estado faça demais, mas principalmente que faça mal aquilo que deveria fazer” e continua... “se o estado se retirar, é o próprio vínculo social que corre risco de se decompor”. Por tanto, precisamos aumentar a participação do estado, sobretudo enquanto indutor de uma rede de seguridade social capaz de assegurar instrumentos garantidores da vida. Do ponto de vista prático é preciso reverter as políticas de desoneração fiscal, atacar as desigualdades pelo método correto, ou seja realizar as reformas necessárias como a tributária e a fiscal, para não falar da reforma política. Distribuir renda e riqueza, além de rever os mecanismos que transferem riqueza do Estado para o setor financeiro via dívida pública.

Em outras palavras, é preciso rever nossa subcidadania literalmente saída da caserna, resgatar a democracia e enterrar o fascismo político/cultural que assola metade da população brasileira.

Somente aí conseguiremos frear o moinho que teima em gastar nossa gente.



Rafael dos Santos da Silva é Professor na Universidade Federal do Ceará – UFC, doutorando em Sociologia pela UC e colaborador de diversos movimentos sociais.