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Reflexão
Original
Anti-Heteropatriarcado
A Teologia Feminista na (des-)construção dos discursos hegemónicos baseados no determinismo biológico
AN Original
2018-11-04
Por Jorge Orfão

Procura-se então, a visibilidade das mulheres dos mitos bíblicos e a necessidade em continuar a questionar a canonização teológica, para melhor compreender como se enraíza o pensamento hegemónico na nossa sociedade e como cada ser humano se relaciona com esse pensamento

Feminist Approaches to the Bible (1995)1, livro editado por Hershel Shanks reúne um conjunto de textos escritos por um grupo de teólogas feministas. Emergem aqui novas ideias e diferentes perspectivas em torno da Bíblia, focalizadas nos padrões que definem a relação entre homem e mulher; e como ambos se relacionam com o texto sagrado. Os ensaios apresentados nesta compilação exploram algumas das personagens femininas da Bíblia em articulação com as personagens masculinas. Cada autora sugere novas interpretações sobre o feminino, nomeadamente nas representações de Eva, Miriam, Maria e Maria Madalena. Relacionando os estudos feministas com a Bíblia, conseguimos desenvolver uma perspectiva literária e feminista das escrituras sagradas, com a finalidade de compreender como estas têm influenciado o pensamento ocidental acerca dos papéis atribuídos a cada um dos sexos e a relação destes com as diferentes representações feminina e masculina.

O foco de atenção será tentar compreender como a Bíblia tem contribuído para instituir o patriarcado na nossa sociedade. Ao compreender-se como se desenvolvem os padrões hegemónicos na sociedade, abre-se o espaço à vontade de mudar esse paradigma e, no caso de não haver redenção possível, pelo menos tentarmos entender o porquê dessa impossibilidade. A teologia feminista centra-se fundamentalmente em dar visibilidade às mulheres bíblicas. Phyllis Trible, no seu ensaio “Eve and Miriam: From the Margins to the Center”2, um dos textos publicados em Feminist Approaches to the Bible, explica como o texto bíblico está aberto a uma infinidade de interpretações possíveis e põe em evidência a pressuposição de que a Bíblia é um texto basilar na instituição do patriarcalismo. Neste sentido, torna-se pertinente desconstruir as representações canónicas das mulheres nos textos sagrados, denunciando como as considerações normativas da teologia reforçam a construção dos papéis sexuais. Ao investir nestes pressupostos, a canonização da Bíblia torna-se ambígua e, por vezes, contraditória.

Reparemos como no Antigo Testamento nos é contada a história da criação do homem e da mulher no Génesis, o primeiro livro da Bíblia: “Deus disse ainda: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança.’ (…) Deus criou então o ser humano à sua imagem; criou-o como verdadeira imagem de Deus. E este ser humano criado por Deus é o homem e a mulher.” Constatamos que Deus criou o homem no mesmo momento em que criou a mulher e deu-lhes o estatuto de seres humanos, numa base de igualdade. À primeira vista, podemos imaginar um mundo onde é dada à mulher a mesma autonomia que se dá ao sexo oposto. No entanto, quatro ou cinco parágrafos mais adiante; conta-se o seguinte: “O Senhor Deus modelou o homem com barro da terra. Soprou-lhe nas narinas e deu-lhe respiração e vida. (…) O Senhor Deus fez com que o homem adormecesse e dormisse um sono muito profundo. Durante o sono, tirou-lhe uma das costelas, e fez crescer de novo a carne naquele lugar. Da costela que tinha tirado do homem, o Senhor Deus fez a mulher e apresentou-a ao homem.”

Torna-se notório como se subentende a forma como o texto se encaminha de repente numa direcção em que a figura masculina adquire o seu papel dominador, transformando a mulher numa criação dele dependente e a partir de si. No primeiro momento, mulher e homem parecem ser criados em simultâneo e à imagem de Deus. Num segundo momento, a tradição do cristianismo parece salientar que a mulher é criada a partir do corpo do homem. Esse homem, por sua vez, é criado a partir do barro e “animado” pelo sopro de Deus, o que lhe dá simbolicamente um carácter divino, ligando-o directamente a Deus e à espiritualidade na terra. A mulher é criada a partir do corpo do homem, o que ética e simbolicamente a coloca numa posição inferior. Tendo como ponto de partida, a história bíblica das origens do ser humano, a tradição do cristianismo ocidental coloca a mulher numa posição condicionada pelo homem, em que ela vive à mercê do pai ou do marido e onde a lei do patriarcado ganha a sua forma mais primitiva, estabelecendo-se assim, os fundamentos éticos e simbólicos de uma hierarquia com base no determinismo biológico.

A justificação para uma interpretação feminista da Bíblia torna-se assim patente, uma vez que o documento bíblico emerge do imaginário masculino, o qual tem vindo apoiar a estruturação do poder hegemónico do homem. A teologia feminista tem vindo a analisar o pensamento hegemónico que se reflete na organização da sociedade ocidental, fazendo o ser humano interiorizar uma organização pretendida e domada pelo patriarcado. Apesar das diversas possibilidades de interpretação das narrativas míticas, a tradição judaico-cristã continua a insistir nas versões que tendem a menosprezar as mulheres na sociedade. O discurso normativo persiste em basear-se no texto bíblico para instituir a ideia de que a mulher é a segunda a ser criada, e a primeira a pecar. Esta interpretação está de tal forma instituída na sociedade patriarcal, que impossibilita por vezes, a reabilitação das narrativas do Livro Sagrado.

O que nos interessa aqui apreender é a forma como a teologia normativa se aproveita do texto bíblico para reforçar a ideia da subvalorização do sexo feminino. Portanto, neste sentido continuar-se-á a atribuir um poder simbólico à mulher muito aquém do seu poder real, que tantas vezes é marginalizado e oprimido. A forma como o poder institucional interpreta o texto bíblico continua a favorecer o sexo masculino, sublinhando padrões morais específicos que condicionam o sexo feminino, como é o caso do mito da criação do ser humano. Enquanto as instituições hegemónicas investem na singularidade da Bíblia, a teologia feminista revela a sua ambiguidade. Desmistifica-se a mulher, tornando-a visível e expondo a forma como os papéis sociais lhes são impostos, condicionando-a frente ao poder patriarcal. Por razões óbvias, procura-se então, a visibilidade das mulheres dos mitos bíblicos e a necessidade em continuar a questionar a canonização teológica, para melhor compreender como se enraíza o pensamento hegemónico na nossa sociedade e como cada ser humano se relaciona com esse pensamento.


1Shanks, Hershel (ed.) (1995). Feminist Approaches to the Bible. Washington: Biblical Archaeology Society.

 2Trible, Phyllis (1995). “Eve and Miriam: From the Margins to the Center”, In: Feminist Approaches to the Bible. Washington: Biblical Archaeology Society. (pp. 5-24).


* Jorge Correia Orfão é Doutorando em Discursos: Cultura, História e Sociedade no CES.