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Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
Alteridade e representações mediáticas: DeOthering, uma agenda de investigação.
AN Original - DeOthering
2018-10-08
Por Júlia Garraio

Este artigo é parte de uma série de publicações de autoria da equipe de investigação do projeto DeOthering, publicado no Alice News com cadência mensal.

As mais recentes notícias sobre o navio Aquarius - perda da bandeira do Panamá e proibição de atracagem em diversos portos europeus - ilustram bem o encerramento e a securitização crescentes das fronteiras europeias assim como a tendência galopante para a criminalização da ajuda a migrantes em risco nas águas do Mediterrâneo. Se a ajuda humanitária e a solidariedade para com os/as mais desprotegidos/as eram comportamentos que gozavam tradicionalmente de uma carga positiva e estavam associados a iniciativas individuais, no atual contexto da migração para uma “Europa fortaleza”, elas são hoje cada vez mais entendidas como competências do domínio do Estado, submetendo-se a controlos apertados por parte dos aparelhos de securitização.

Esta evolução na gestão das fronteiras externas da União Europeia e as mudanças comportamentais que a acompanham não se traduzem apenas em transformações no discurso público. A própria linguagem tem sido um instrumento fundamental para o avanço, a difusão, a legitimação e a aceitação por parte da população dessas mesmas políticas europeias. Vejamos alguns exemplos sinalizadores das transformações profundas sofridas por determinados conceitos. Quando equacionada nos debates sobre migração para a Europa, “solidariedade” deixou de significar ajuda aos/as migrantes; atualmente, nas cimeiras europeias e na imprensa, “solidariedade” tende a exprimir cooperação entre os estados membros, no sentido de que todos os países da EU devem partilhar o “fardo” dos/as refugiados/as, assim auxiliando os países procurados pelos/as requerentes de asilo como porta de entrada (Grécia, Itália) e como destino (Alemanha, Suécia, Reino Unido). Em discursos legitimadores do encerramento de fronteiras e do controlo de fluxos migratórios, os conceitos “proteção” e “segurança” aplicam-se aos/às cidadãos/ãs e ao território europeus, referindo-se à necessidade de os proteger da criminalidade e do terrorismo que esses mesmos discursos associam aos/às migrantes. Apesar das mortes e da violência que marcam as jornadas destas pessoas, tais conceitos raramente são usados para referir a sua segurança física durante a fuga à miséria e à violência que assola os seus países de origem. Desde os atentados de 11 de setembro, “terror” e “medo” passaram a fazer parte dos vocábulos recorrentes na imprensa europeia em referências às experiências e ao estado psicológico dos/as cidadãs europeus/ias confrontados/as com os ataques terroristas perpetrados por jihadistas em algumas cidades ocidentais. Raramente “terror” e “medo” integram o campo semântico com que são descritas as vivências das populações alvo de bombardeamentos ocidentais nos países invadidos no contexto da Guerra ao Terrorismo ou nas guerras de procuração e/ou com armamento fabricado na Europa ou mesmo de quem faz as travessias do Mediterrâneo rumo à Europa fugindo da guerra, da fome e de perseguições. Por fim, veja-se como a palavra composta alemã Gutmensch (gut/bom + Mensch/pessoa), tradicionalmente usada de maneira sarcástica, sofreu uma transformação semântica significativa no contexto dos recentes debates em torno do asilo e da migração. Atualmente é quase um insulto usado para difamar como “burro”, “ingénuo”, “sem juízo” e “alheado” quem se empenha no auxílio aos/às migrantes.

Estes processos de implementação de visões do mundo através da linguagem operam-se frequentemente pela recuperação e atualização de imaginários coletivos herdados. Quando em 2015, perante um agudizar de combates na Síria, se assiste a um afluxo de refugiados/as às portas da Europa, o debate mediático foi antes de tudo uma luta de imagens, um combate de discursos pela promoção de narrativas rivais impregnadas de imaginários “ancestrais”. Imagens como a foto do pequeno Alan Kurdi afogado, a do pai em lágrimas na chegada à Grécia ou o vídeo do pai pontapeado por uma jornalista húngara tentavam destabilizar os discursos securitários e a indiferença da opinião pública europeia através da visibilização de subjetividades mediatizadas através de representações alusivas a “arquétipos transnacionais”: a dor pelo filho morto, a angústia do pai que tenta proteger a família e levar os filhos para um lugar seguro.  No entanto, outras imagens foram sendo avançadas no panorama mediático europeu para contestar essas mesmas imagens apelativas à empatia: grandes planos de homens representados como uma massa humana interminável na rota dos Balcãs sugestiva de uma “invasão islâmica” novamente “às portas de Viena”. Imagens de homens “de aspeto árabe” a assediar mulheres louras na Passagem de Ano em Colónia foram instrumentalizadas como “consequência da invasão”, como símbolo de uma Europa branca desprotegida e violentada por masculinidades racializadas. Vejam-se também as reações à recente notícia “Migrantes resgatados pelo Aquarius chegaram a Portugal e vão ficar no Fundão” (Público, 25-09-2018), um texto que vem acompanhado de uma foto de jovens negros provavelmente subsarianos. Na página Facebook do jornal podem ler-se comentários como “E andou o d. Afonso Henriques a libertar a península para agora lhes entregar o território de mão beijada...” e “A Islamizaçao forçada do Fundão por foral de D António Costa do seu palácio em Lisboa foi uma coisa nunca prevista pelos dados da Pordata no tempo de D Afonso.”. O mito da Eurábia e a fobia da invasão islâmica, recorrentes nos discursos transnacionais de extrema-direita europeia, confundem-se nas reações à notícia com imaginários locais, nomeadamente a visão de Portugal como nação cristã forjada na guerra contra os Mouros e o racismo anti-negro herdado do colonialismo.

O projeto de investigação DeOthering: Deconstructing Risk and Otherness: hegemonic scripts and counter-narratives on migrants/refugees and 'internal Others' in Portuguese and European mediascapes” (POCI-01-0145-FEDER-029997, julho de 2018 a junho de 2021) pretende precisamente mapear, analisar e desconstruir este tipo de discursos. Em primeiro lugar, examina como são construídos os/as migrantes e os/as “outros/as internos/as” no contexto das várias crises políticas que assolaram a União Europeia entre 2008 e 2018, mapeando as suas interconexões com narrativas produzidas no domínio da segurança e no quadro da Guerra ao Terrorismo. O seu foco, uma análise de Portugal à luz de estudos de caso europeus profundamente afetados por ameaças terroristas e/ou por fluxos migratórios (Itália, Alemanha, França e Reino Unido), pretende investigar a construção de narrativas transnacionais de risco que permeiam a Europa independentemente da sua exposição "diferenciada". A abordagem epistemológica do projeto baseia-se no papel constitutivo dos discursos, isto é, no modo como determinadas perceções, representações e mitologias são mobilizadas, intencionalmente ou não, por determinados atores, e como estes discursos influenciam determinadas perceções e práticas de segurança.

O projeto irá identificar como se constroem narrativas europeias transnacionais de eventos chave destes anos, tais como os numerosos desembarques em Lampedusa, os realojamentos em Portugal, os atentados de Paris, a demolição do campo de refugiados de Calais ou os eventos da Passagem de Ano em Colónia, e em que medida essas narrativas transnacionais se aproximam ou distinguem das narrativas nacionais sobre os mesmos eventos. Não menos importante, DeOthering pretende mapear e visibilizar media e narrativas alternativas que contribuam precisamente para processos de deothering.

Entre os resultados previstos do projeto contam-se um website, várias publicações académicas, um manual de literacia mediática, um kit sobre representações mediáticas direcionado para jornalistas e editores, e a organização de um colóquio internacional e de uma exposição.


Júlia Garraio é investigadora do Centro de Estudos Sociais. Violência, memória, identidade, discurso e representação são conceitos essenciais no seu trabalho. Grande parte da sua investigação, das suas atividades e publicações foi dedicada à literatura e à cultura alemã do século XX. Na sua dissertação de doutoramento estudou a obra do poeta alemão Günter Eich (1907-1972). O seu projeto de pós-doutoramento debruçou-se sobre a memória pública da violação de mulheres e adolescentes alemãs no contexto da Segunda Guerra Mundial.