Quem são as pessoas que em grande maioria estão em trabalhos de entrega? Segundo a reportagem de Lorena Lara, g1 de 13 de abr.2023, o Brasil tinha em 2023 aproximadamente 1,6 milhão de pessoas trabalhando como entregadores ou motoristas de aplicativos no Brasil. A matéria mostra ainda um perfil dos motoristas: a idade média é de 39 anos; 60% deles tem ensino médio completo, 62% são negros; 35% são brancos; 3% são amarelos; 1% é indígena,95% são homens; 5% são mulheres.
Quando o perfil é dos entregadores localizamos: a idade média de 33 anos; 59% deles têm ensino médio completo; 68% são negros; 29% são brancos; 2% são amarelos; 1% é indígena, 97% são homens; 3% são mulheres. Captamos ainda que 63% deles querem continuar trabalhando com aplicativos. Todavia, temos acompanhado pela mídia, notícias sobre a violência, intolerância e racismo sofrido por estes grupos, em especial de entregadores. Cita-se como exemplos: 1) Corporativismo e racismo no caso do policial que baleou entregador no Rio | Revista Fórum ; 2), Entregador é ameaçado de morte e tem os dentes quebrados após fechada de carro em condomínio de Goiânia ; 3) 'Tenho direito a ter o mesmo que você': entregador negro enfrenta racista em condomínio rico - Ponte Jornalismo”; 4) 'Me chamou de preto favelado e agora ela tenta reverter', diz entregador após ex-atleta o acusar de homofobia, dentre outros casos.
Foto do Autor.
Compreende-se que estes casos não ficam no isolamento. A herança escravista pode explicar a violência contra entregadores. Faz-se necessário refletir sobre as desigualdades sociais e raciais que são atribuídas à herança do passado escravista, à política de branqueamento da passagem do século XIX para o XX, à histórica condescendência das elites brasileiras com desigualdades sociais e ao racismo estrutural e simbólico contemporâneo. As desigualdades raciais no Brasil não são apenas expressivas, mas extremamente persistentes ao longo do tempo e podem ser explicadas por uma concepção de racismo que integra as dimensões estrutural e simbólica na produção e na reprodução das desigualdades raciais no país.
Compreende-se que no plano estrutural, o racismo consiste no sistemático acesso desigual a bens materiais entre os diferentes segmentos raciais. Esta conceituação considera o preconceito interpessoal como apenas uma das possíveis manifestações do racismo. Nesse sentido, enfatiza-se, sobretudo relações sociais e não apenas tendências individuais de pessoas. A presença do racismo, do preconceito e da discriminação racial como práticas sociais, representa obstáculo à redução das desigualdades raciais, obstáculo que só pode ser vencido com a mobilização de esforços de cunho específico.
A sua vez, o conceito de racismo institucional permite uma melhor percepção acerca dos mecanismos de produção e reprodução das desigualdades raciais, inclusive no que tange às políticas públicas. Sua utilização amplia as possibilidades de compreensão sobre o tratamento desigual, assim como permite identificar um novo terreno de enfrentamento das iniquidades no acesso e no atendimento de diferentes grupos raciais dentro das políticas públicas, abrindo novas frentes de combate ao preconceito e à discriminação, assim como novos instrumentos de promoção de equidade. Sua abordagem possibilita que se identifique o racismo não apenas nas relações do cotidiano, mas pelas desvantagens que causa a determinados grupos (negros, povos indígenas, imigrantes), entre outros.
O racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações. Jurema Werneck conceituou racismo institucional como um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades do racismo, fazendo com que os primeiros inexistam ou existam de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência dos grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordinação desse último. Seu impacto na vida da população negra no Brasil pode ser percebido tanto na sua relação direta com os serviços e as instituições que deveriam garantir seus direitos fundamentais.
Na sociedade brasileira, o racismo se define por múltiplos rostos, que abrangem desde uma feição estrutural, institucional, até as microrrelações, como discutiu João Clemente de Souza Neto e Marcos Silva. Historicamente, os movimentos sociais comprometidos com os direitos humanos, principalmente o Movimento Negro brasileiro, sempre lutaram para modificar essa situação. As Leis n.º 10.639/03 e 11.645/08 (ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena) - Políticas Públicas Educacionais voltadas para a população negra, e de povos indígenas, são derivadas dessas lutas. Acredita-se que o desafio que enfrentamos é tensionar o campo educacional a repensar seu currículo e epistemologias e quebrar o silêncio da História de populações racializadas.
Por um lado, ressaltamos a importância de influenciadores negros, movimento sociais negros e de pessoas engajadas a luta antirracista que informam e combatem o racismo na mídia e outras ações. O combate ao racismo ganhou força na internet e nas redes sociais com a denúncia dos casos , informações e organizações de movimentos para discutir o tema. E de empresas de aplicativos (nosso foco de atenção) que tem divulgado notas na imprensa visando travar o racismo contra seus entregadores. Isto é, enfatizando que esperam atitudes respeitosas por parte de seus clientes e colaboradores. Ou seja, estes não devem praticar atos discriminatórios, preconceituosos, racistas, homofóbicos, machistas, entre outras ações de intolerâncias, como pudemos observar em uma nota de empresa de aplicativo relacionada a entregas.
Por outro lado, enfatizamos a relevância de uma Educação Antirracista por meio de estratégias organizacionais, institucionais, educacionais, sociedade civil, movimentos socias de base de combate ao racismo para eliminar formas de discriminação e opressão que atingem populações racializadas (negras, indígenas), entre outros grupos, e que se reproduzem nos mais diversos setores das sociedades contemporâneas: economia, educação, comércio, relações do dia-a-dia, evidenciando temas relacionados a raça, classe, racismo, discriminação, poder, privilégio, discriminação, justiça, direitos humanos. É fundamental a promoção de ações antirracistas no espaço educacional e nas empresas e organizações com vistas à práticas pedagógicas que estabeleçam ações que valorizem a história e cultura de africanos, afrodescendentes, dos povos indígenas, combatendo o racismo.
Ressalta-se que a sociedade brasileira consta com várias legislações de combate ao racismo, dentre outras, as Leis n.º 10.639/2003, supracitada neste texto, entretanto, o Estudo realizado com 1.187 Secretarias Municipais de Educação, o que equivale a 21% das redes municipais de ensino do país, revela que a maioria delas (71%) realiza pouca ou nenhuma ação para a efetividade da Lei que há 20 anos obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas.
Compreendemos que é urgente reforçar o compromisso coletivo entre a sociedade civil e representantes do poder público para o cumprimento e fortalecimento da Lei 10.639/2003 na prática e para que possamos garantir condições para sua realização também como enfrentamento do racismo na área da educação. Assim frisamos a importância do monitoramento de indicadores que deem visibilidade à dinâmica das desigualdades raciais visando travar quaisquer formas de discriminação e racismo. Vale lembrar que a sociedade brasileira, por meio de suas instituições, tem ferramentas capazes para cumprir as Leis, dentre outras, a Lei n.º 14532/2023; Lei n.º 7716/1989.
---
Marcos Antonio Batista da Silva - Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra.