pt
Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
Palestina, outubro, 2023: versão de um poema da Rafeef
AN Original
2023-11-17
Por Bruno Costa, Rafeef Ziadah

Palestina, outubro, 2023, corpos, “não tenho confiança nos números que as/os palestinianas/os estão a apresentar”, corpos, “terroristas”, corpos e mais corpos, “não é altura para um cessar-fogo”, números, “animais”, estatísticas, resoluções da ONU, direito internacional, “libertem o inferno!”, direitos humanos, “façam tudo o que for necessário”, especialista nisto, “não condena o Hamas?”, especialista naquilo, “direito de se defender” e um genocídio em curso, “Gaza não voltará a ser o que era antes. Vamos eliminar tudo”, tudo transmitido em direto em todo o mundo, todos vemos e ninguém quer ver, talvez, daqui a 40 anos, com a devida distância, com os corpos frios, todos reconhecerão o que está a acontecer, e dirão “como foi possível?”. Sim, está a acontecer, está a ser denunciado nas ruas, praças, televisões, redes sociais, sabemos que está a acontecer, está a acontecer, sabemos como é possível estar a acontecer, não é inexplicável ou inesperado, é parte de uma visão de mundo, de uma estrutura que nunca saiu do lugar e se foi metamorfoseando, adaptando à passagem do tempo e à impossibilidade de permanecer igual fruto da reinvenção e criatividade de uma luta cumulativa e permanente. Mas teimamos em não querer perceber como essa estrutura opera e em fragmentar a realidade de modo a apresentar os cadáveres no fundo do Mar Mediterrâneo, os cadáveres em Gaza, os cadáveres que assombram as memórias de um Estado português negacionista da herança colonial e do racismo estrutural, os cadáveres na Cisjordânia, os cadáveres de indígenas, de pessoas negras, de pessoas trans e de mulheres, os cadáveres em Jerusalém Oriental, os cadáveres que caem ao ritmo de uma exploração e precariedade cada vez mais intensas, os cadáveres nos territórios ocupados em 1948 e muitos outros cadáveres como pertencentes a diferentes histórias e a uma outra história, a um passado, a um património de opressão cómoda que não convém tocar nem derrubar. Sim, é verdade, cada uma dessas histórias é específica, mas elas não são excecionais e partem todas dessa lógica de morte, despossessão, apropriação, extração, desumanização, acumulação, normatividade, exploração, etc. Essa lógica tem nome, co-lo-ni-a-lis-mo! ca-pi-ta-lis-mo! cis-hetero-patriarcado! Ela funciona de modo articulado e tem na violência genocida uma ferramenta central, ontem e hoje, agora, neste preciso momento.

A Rafeef é filha da Nakba, como milhões de palestinianas nasceu como refugiada, filha de refugiados, em Beirute, no Líbano. A partir da sua poesia falada e herdada ela denuncia o peso carregado por todas/os as/os palestinianas/os. Como se não chegasse o peso do exílio, da permanente ausência, têm de explicar, justificar, contextualizar, voltar a explicar, voltar a explicar, voltar a explicar, “não condena o Hamas?”, voltar a explicar, voltar a explicar a sua catástrofe num ciclo interminável de massacres, expulsões, massacres, prisões, massacres, despossessões, massacres, humilhações, massacres, torturas, massacres, limpezas étnicas, “não condena o Hamas?”, massacres, massacres, massacres. Este ciclo de cobardia e violência de quem observa, enquadra e duvida é o mesmo ciclo da Nakba-em-curso que parece colocar as/os palestinianas/os num presente, presente, presente, presente perpétuo marcado pela morte e pela despossessão. Lembro-me das palavras da Rafeef e volto a elas quando vejo companheiras/os palestinianas/os na televisão a serem interrogadas/os, a serem colocadas/os no banco dos réus, como se devessem a um mundo virado do avesso uma explicação por estarem a ser exterminadas/os, enquanto, com o cu no sofá, ponderamos os argumentos a partir da nossa suposta neutralidade miseravelmente desumanizadora e cúmplice. Achamos que é legítimo alguém ter de se humanizar em direto sem nos perguntarmos o que aconteceu antes disso, achamos legítimo extrair a humanidade de (e a) alguém. Tudo se mercantiliza, a paz é abordada como um produto que se tem ou se deseja ter, os corpos são “(des)proporcionalmente” transacionados, a humanidade é vendida em direto em espaços onde existem aquelas vidas inteligíveis e identificáveis que contam e aquelas que são projetadas como entulho e excedente, danos colaterais misturados com os escombros de edifícios em ruínas. Estas apenas podem ser humanizadas como objeto de caridade, afinal estamos a fazer um favor a quem optou pela imperfeição de não assistir passivamente ao seu desaparecimento, recusando o caminho que decidimos prévia e unilateralmente ser o melhor para a redenção das suas almas.

Mas decidi traduzir o poema da Rafeef em solidariedade com as/os palestinianas/os com quem tive o privilégio de acordar de manhã e partilhar vida! Recuso-me a aceitar que a sua história, catástrofe e existência possam voltar a ser negadas em direto.


Montagem que apresenta desaparecimento de um ecrã com a imagem das crateras abertas pelo bombardeamento israelita do campo de refugiados de Jabalya, em Gaza (31 de outubro de 2023). Fonte: Bruno Costa, 2023.

Nós, as palestinianas, ensinamos vida!

Hoje, o meu corpo foi um massacre transmitido em direto.

Hoje, o meu corpo foi um massacre transmitido em direto
que teve de caber em frases feitas e limites de palavras.

Hoje, o meu corpo foi um massacre transmitido em direto
que teve de caber em frases feitas e limites de palavras,
preenchido com suficientes estatísticas para enfrentar o argumento ponderado.

E eu aperfeiçoei o meu português,
e eu aprendi as minhas resoluções da ONU,

Mas mesmo assim ele perguntou-me:
Senhora Ziadah,
não acha que tudo ficaria resolvido
se simplesmente parassem de ensinar tanto ódio às vossas crianças.

pausa.

Procuro dentro mim por força, por ser paciente,
mas a paciência não me está na ponta da língua
enquanto as bombas caem sobre Gaza

a paciência simplesmente escapou-se-me.

pausa.

sorriso.

Nós ensinamos vida, pá!

Rafeef, lembra-te de sorrir.

pausa.

Nós ensinamos vida, pá!
Nós, as palestinianas, ensinamos vida depois deles terem ocupado o último céu,
Nós ensinamos vida, depois deles terem construído os seus colonatos,
       os seus muros do apartheid,
       depois dos últimos céus,
Nós ensinamos vida, pá!

Mas hoje, o meu corpo foi um massacre transmitido em direto
feito para caber em frases feitas e limites de palavras.

: Dê-nos apenas uma história, uma história humana
  sabe, isto não é político
  nós só queremos contar às pessoas sobre você e o seu povo
  então, dê-nos uma história humana
  mas não mencione aquelas palavras, apartheid e ocupação
  isto não é político
  tem de me ajudar como jornalista,
  a ajudá-la a contar a sua história
  que não é uma história política!

Hoje, o meu corpo foi um massacre transmitido em direto.

: E que tal dar-nos a história de uma mulher em Gaza que precisa de medicamentos
  e que tal você? tem suficientes membros com os ossos partidos para cobrir o sol?
  entregue-me os seus mortos e dê-me a lista com os seus nomes em 1200 palavras.

Hoje, o meu corpo foi um massacre transmitido em direto
feito para caber em frases feitas e limites de palavras
e comover aqueles que são insensíveis a sangue terrorista.

mas eles lamentam muito,
lamentam muito pelo gado sobre Gaza

então eu dou-lhes resoluções da ONU
e estatísticas
e nós condenamos
e nós deploramos
e nós rejeitamos
e estes não são dois lados equiparáveis: ocupante e ocupado.

e 100 mortos, 200 mortos, e 1000 mortos
e entre crime de guerra e massacre fico sem palavras.

e sorrio, “não exótica”,
sorrio, “não terrorista”,
e conto e volto a contar
100 mortos, 200 mortos, 1000 mortos.

está alguém aí fora?
irá alguém ouvir?

Eu queria poder gemer sobre os seus corpos.
Eu queria apenas poder correr descalça em cada campo de refugiados
e segurar cada criança
cobrir os seus ouvidos
para que não tivessem de ouvir o som de bombardeamentos para o resto das suas vidas
tal como eu oiço.

Hoje, o meu corpo foi um massacre transmitido em direto
e deixa-me apenas dizer-te
que as tuas resoluções da ONU nunca fizeram nada em relação a isto.

e nenhuma frase feita,
  nenhuma frase feita que eu possa apresentar
não importa quão bom fique o meu português

nenhuma frase feita
nenhuma frase feita
nenhuma frase feita
nenhuma frase feita os trará de volta à vida!

nenhuma frase feita vai concertar isto!

Nós ensinamos vida, pá!
Nós ensinamos vida, pá!
Nós, as palestinianas, acordamos todas as manhãs para ensinar ao resto do mundo
  vida, pá!

Poema: Rafeef Ziadah
Introdução e versão: Bruno Costa (CES)

---

Bruno Costa é Doutorando do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global (financiado pela FCT desde outubro de 2019 e com trabalho de campo realizado entre setembro e dezembro de 2022 na Universidade de Birzeit, Palestina), coordenado pelo Centro de Estudos Sociais em parceria com a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.