Em 1970, a partir do seu exílio em Beirute, Ghassan Kanafani –uma das lideranças da FPLP (Frente Popular Para a Libertação da Palestina, 1967), partido político integrante da OLP (Organização Para a Libertação da Palestina, 1964), foi assassinado em 1972, aos 36 anos, pela Mossad (serviços de inteligência israelitas)– concedeu uma das raras entrevistas em inglês ao jornalista australiano Richard Carleton, da ABC News Austrália. A análise certeira e concisa feita pelo intelectual e ativista político palestiniano sobre as causas e consequências do projeto colonial sionista (parte de um projeto imperialista mais amplo), mas também sobre as condições de possibilidade e enquadramento da luta pela libertação levada a cabo pelas/os palestinianas/os desde o seu exílio forçado, inspiraram e continuam a inspirar ativistas em todo o mundo. Carleton apresenta uma visão de mundo que naturaliza (de forma quase caricatural) a narrativa hegemónica representada pelo seu lugar de enunciação (masculino, descendente de europeus que colonizaram o território hoje conhecido como Austrália, representante de uma empresa de comunicação que abraça uma visão orientalista das/os as/os palestinianas/os a partir de uma perspetiva civilizacional que legitima o projeto sionista na e para a região), enquanto Kanafani a desconstrói, ponto por ponto, perturbando o lugar de quem observa com suposta neutralidade e objetividade e recusando ser objeto dessa análise e representação. O texto que se segue é uma transcrição/tradução livre levada a cabo por Bruno Costa a partir do conteúdo oral da entrevista (disponível online).
Imagem com frame da entrevista e publicações de Ghassan Kanafani traduzidas para inglês e português. Fonte: Bruno Costa (2023)
Richard Carleton (prelúdio): Beirute é a mais ocidentalizada de todas as capitais árabes. As marcas do período colonial francês na cidade são tão evidentes como na região do Quebeque [Canadá]. Segundo a descrição dos franceses, Beirute era um paraíso turístico mediterrânico e ainda podemos encontrar alguns vestígios desse esplendor de um passado que desaparece lentamente. Mas, da mesma forma que a turbulência no Médio Oriente afasta os turistas, também prejudica os negócios –especialmente o setor bancário, que fez de Beirute a capital financeira da região. Agora, o exército libanês tem tanques e carros blindados permanentemente estacionados em frente às agências bancárias da capital. No lugar do pequeno setor empresarial de Beirute, desenvolveu-se um “novo negócio”, o da revolução palestiniana. Os guerrilheiros palestinianos em Beirute não operam nas mesmas condições dos vietcongues. Aqui eles não são, de forma alguma, ilegais, operam de forma totalmente legitimada. Na rua principal de Beirute, a guerrilha de maior expressão tem à sua disposição um edifício de escritórios com três andares. Um edifício tão moderno como qualquer outro em Sydney, mas os guerrilheiros armados, de guarda com metralhadoras, não nos deixaram tirar fotos e nós não argumentamos. Dos onze movimentos de guerrilha palestinianos, o mais radical de todos é a Frente Popular para a Libertação da Palestina, a FPLP. A Frente Popular está hoje tão bem organizada, que tem até o seu próprio jornal, com uma tiragem diária estimada de 23.000 exemplares. Foi a Frente Popular que desviou e fez explodir três jatos no Aeroporto da Revolução, no deserto da Jordânia, e foi a Frente Popular que dinamitou o [avião] jumbo da PAN AM no Cairo. O líder da Frente Popular em Beirute é Ghassan Kanafani. Kanafani nasceu na Palestina, mas “fugiu” [foi expulso] em 1948 do [pelo] terror sionista, como ele refere. Desde então tem planeado a destruição tanto dos sionistas como dos [governos] árabes reacionários.
Ghassan Kanafani: O que eu sei, o que eu realmente sei, é que a história do mundo foi sempre a história de pessoas que são oprimidas e que lutam contra os seus opressores, de pessoas oprimidas que abraçam uma causa justa e que lutam contra opressores que usam a sua força para as explorar.
RC: Vejamos os combates que têm ocorrido na Jordânia nas últimas semanas. É [também] a organização de que faz parte que tem travado esses combates. O que alcançaram com isso?
GK: Algo importante é que temos uma causa para lutar. Isso é muito. Este povo, o povo palestiniano, prefere morrer em pé a perder a sua causa. Conseguimos provar que o rei [Hussein, da Jordânia] está errado. Conseguimos provar que esta nação [palestiniana] continuará a lutar até à vitória. Conseguimos demonstrar que o nosso povo nunca será derrotado. Conseguimos ensinar a cada pessoa deste mundo que somos uma pequena, mas corajosa nação, uma nação que vai lutar até à última gota de sangue para conseguir a justiça que o mundo nos falhou em dar. Isto foi o que conseguimos.
RC: Parece-me que a guerra civil foi bastante infrutífera.
GK: Não é uma guerra civil, é um povo a defender-se contra um governo fascista, um governo que vocês [no Ocidente] defendem porque apenas o rei Hussein [da Jordânia] tem um passaporte árabe. Não é uma guerra civil!
RC: Ou então um conflito.
GK: Não é um conflito! É um movimento de libertação que luta por justiça.
RC: Bem, é indiferente.
GK: Não é indiferente porque é aqui que começa o problema! Porque é daí que partem todas as suas perguntas, o problema começa exatamente aí. Este é um povo discriminado que luta pelos seus direitos. Esta é a história! Se você disser que se trata de uma guerra civil, então todas as suas perguntas serão justificadas a partir desse ponto. Se você disser que é um conflito, então é claro que todos ficarão surpreendidos quando souberem o que está a acontecer.
RC: Porque é que a sua organização não se envolve em conversações de paz com os israelitas?
GK: Você não quer dizer exatamente negociações de paz, mas capitulação ou rendição.
RC: Porque não simplesmente conversar?
GK: Conversar com quem?
RC: Com os líderes israelitas.
GK: Está a sugerir um tipo de conversa entre a espada e o pescoço.
RC: Bem, se não houver espadas nem armas na sala, você poderá conversar.
GK: Não. Eu nunca vi qualquer conversa entre um projeto colonial e um movimento de libertação nacional.
RC: Mas apesar disso, por que não conversar?
GK: Conversar sobre o quê?
RC: Sobre a possibilidade de não lutar.
GK: Não lutar pelo quê?
RC: Não lutar de todo, não importa o motivo.
GK: As pessoas geralmente lutam por alguma coisa e param de lutar por alguma coisa, mas você não me consegue nem dizer sobre o que deveríamos conversar ou porque deveríamos parar de lutar!
RC: Conversar para parar de lutar, para parar a morte e a miséria, a destruição e a dor.
GK: A miséria, a destruição, a dor e a morte de quem?
RC: Dos palestinianos, dos israelitas, dos árabes.
GK: Do povo palestiniano, que foi desenraizado, atirado para os campos de refugiados, que vive à fome, que é assassinado há [mais de] vinte anos e que é proibido de usar até mesmo o nome de palestiniano?
RC: Melhor assim do que morto.
GK: Talvez para si. Mas para nós não é. Para nós, libertar o nosso país, ter dignidade, ter respeito, ver consagrados os nossos direitos, é algo tão essencial como a própria vida.
RC: Chama o rei Hussein [da Jordânia] de fascista. A quem mais entre os líderes árabes se opõe totalmente?
GK: Diferenciamos entre dois tipos de governos árabes. Aqueles a que chamamos de reacionários e que estão completamente ligados ao projeto imperialista [ocidental], como o governo do rei Hussein [da Jordânia], como o governo da Arábia Saudita, como o governo marroquino, como o governo tunisino… e depois temos outros a que chamamos governos militares de caráter pequeno-burguês, como o governo da Síria, do Iraque, do Egito, da Argélia, etc.
RC: Para encerrar queria falar sobre o sequestro do avião. Hoje você considera que foi um erro?
GK: Não cometemos um erro ao sequestrá-lo. Foi uma das coisas mais corretas que já fizemos.
Recomendações de leitura:
Kanafani, Ghassan. All that’s left to you: a novella and short stories. Traduzido por May Jayyusi e Jeremy Reed. Northampton: Interlink Books, 2004.
———. Men in the sun & other Palestinian stories. Traduzido por Hilary Kilpatrick. Boulder: Lynne Rienner, 1999.
———. «On the PFLP and the September Crisis». New Left Review, n.o I/67 (1 de junho de 1971): 50–57.
———. On Zionist Literature. Traduzido por Maḥmoud Najib. Oxford: Ebb Books, 2022.
———. Palestine’s children: Returning to Haifa and other stories. Traduzido por Barbara Harlow e Karen E. Riley. Boulder: Lynne Rienner Publishers, 2000.
———. «Resistance Literature in Occupied Palestine». Afro Asia Writings 1, n.o 2/3 (1968): 65–79.
———. The 1936-39 Revolt in Palestine. London: Tricontinental Society, 1980.
———. «Thoughts on Change and the “Blind Language”/ ﺃﻓﻜﺎﺭ ﻋﻦ ﺍﻟﺘﻐﻴﺮ ﻭ "ﺍﻟﻠﻐﺔ ﺍﻟﻌﻤﻴﺎﺀ». Traduzido por Barbara Harlow e Nejd Yaziji. Alif: Journal of Comparative Poetics, n.o 10 (1990): 137–57.
Entrevistador: Richard Carleton (ABC News Austrália)
Entrevistado: Ghassan Kanafani (FPLP)
Introdução e tradução: Bruno Costa (CES)
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Bruno Costa é Doutorando do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global (financiado pela FCT desde outubro de 2019 e com trabalho de campo realizado entre setembro e dezembro de 2022 na Universidade de Birzeit, Palestina), coordenado pelo Centro de Estudos Sociais em parceria com a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.