A cidade é o local onde ocorre as trocas sociais, comerciais e culturais. É por isso o lugar da mistura, espaço por excelência da chamada “questão social”. Nesse cenário marcado por relações diretas entre a produção espacial e reprodução econômica capitalista, a cidade redesenha o espaço urbano. Como resultado, a história tem registrado profundas perdas de convivência, sociabilidade e até de identidade, cujo ápice pode ser traduzido pela desterritorialização. Em uma palavra: a desigualdade, e nela tudo que conhecemos por injustiça. Importa recordar as palavras do Indiano Amartya Sen em seu livro A Ideia de Justiça a nos lembrar que “o que nos move é a sensação da existência de injustiças claramente remediáveis” para ele a busca por justiça é iniciada “pela percepção assimétrica da injustiça.”
Nesse sentido, o espaço desterritorializado, injusto, e por isso desigual, não permite enfrentar a pobreza pela cidadania. Elemento que vai levar a professora da USP Vera da Silva Telles observar que “o enigma da pobreza está intimamente implicado no modo como os direitos são negados na trama das relações sociais” o que subescreve o problema a dimensão da “incivilidade” como “marca de inferioridade, modo de ser que descredencia o indivíduo para o exercício de seus direitos.”
Portanto, o espaço e a pobreza são, simultaneamente, produtor e resultado da dinâmica da negação ao acesso da cidade. Tal efeito modifica a relação do cidadão com a ecologia, com a mobilidade, com o trabalho e, consequentemente, com a distribuição da riqueza, que, quando muito, se vê reduzida a mera distribuição de renda.
É exatamente nesse particular que ocorre o debate em torno da desigualdade ao assumir a narrativa dialética entre inclusão e exclusão; pobreza e democracia; cidadania e envolvimento político. Tais elementos estão presentes nas observações que compõem a dimensão espaço-tempo enquanto categoria de análise da cidade. Aqui se abre o sagrado debate do “direito à cidade” que segundo a perspectiva sociológica, emerge na possibilidade do ser humano tomar posse do seu destino, ou seja, revolucionar o espaço da cidade. Logo, o direito a cidade, ocorre na concretização do fazer e refazer o meio em que o indivíduo está inserido, como a maior expressão de cidadania.
É neste sentido que reflito uma pequena realidade da cidade em minha volta ao observar seus movimentos a partir da varanda de minha casa. Intempestivamente vejo duas cidades constitutivas da sociedade cearense, absolutamente desigual e segregada.
Na parte da frente, a minha varanda me faz ver o maior parque urbano da América Latina. Trata-se do Parque do Cocó que nos últimos anos atraiu boa parte da elite econômica para suas margens. Do outro lado, olhando da parte de trás, vejo casas simples, apinhadas e muitas vezes inacabadas. Seus moradores acessam ruas estreitas, quase sempre visitadas pela polícia. Acho pouco provável que ali haja saneamento básico. Os fios da companhia elétrica se confundem com os telhados desalinhados, e o metro por pouco não corta suas calçadas.
Volto avistar minha varanda, onde os ventos do belo parque me acariciam a face. Ao lado, há um bonito mercado de varejo. Ornamentado com belas plantas. Há também um bistrô onde se toma um bom café. Estudantes cruzam com segurança a avenida. Eles estão vindos de uma importante escola da cidade e devem fazer suas refeições num self-service caríssimo. Sob essa visão, chego a concluir que a urbanidade em seu conceito moderno, atingiu seu grau máximo. Há poucos metros está um garoto, de não mais que 12 anos a trabalhar horas a fio, trocando sua infância por trabalho forçado, numa tentativa de sobreviver. Essas duas realidades, de exclusão social e opulência, marcam a cidade desigual. Para o notável professor reformado da Universidade de Coimbra Carlos Fortuna é justamente nesse cenário que “os pobres e excluídos são expressões de um impiedoso mecanismo político, marcado por um indizível processo de segregação, e completa destituição de cidadania” Estamos diante de uma sociedade aristocrática construída por miseráveis e pobres de um lado, e do outro habitado e manipulado por questionáveis “cidadãos de bem”. Ou seja, uma sociedade de economia colonial.
Este tipo de economia está na origem da economia da opulência, que ao ser contrastada com a economia da pobreza faz emergir toda sorte de violência política e social que condena hoje a mais de 80% da sociedade cearense a conviver algum tipo de vulnerabilidade alimentar. Não estou esperançoso quanto a divulgação do próximo IDH por bairros. Mas o último, divulgado em 2012 pela Prefeitura de Fortaleza, revela um verdadeiro Apartheid social. Os bairros do Conjunto Palmeiras e o de Lourdes, são duas realidades que obrigam seus habitantes a conviver com a violência e com a opulência. O primeiro, registrou uma dinâmica social em que podemos comparar com aquela encontrada em Serra Leoa, enquanto o segundo equiparou-se a uma realidade norueguesa. Isso mesmo! Em Fortaleza, há realidades sociais africanas e europeias a conviver no mesmo espaço geográfico. Essas duas realidades não dialogam, a pesar de estarem a menos de 10 km em linha reta. São incapazes de traçar projetos comuns, tão pouco participam do mesmo pacto social. Pelo contrário, elas competem entre si. Um lado caça, enquanto o outro é a caça!
Quando o território com baixo IDH é a caça, ele se estabelece na zona da desigualdade. A violência passa a ser o método a representar o dia-a-dia daquela gente. A economia da violência impera um modus operandi inviável. Os corpos negros de jovens são condenados diariamente à morte. A vida é mediada pelo medo. Quando os jovens escapam, restam-lhe a prostituição ou o tráfico. Um território de guerra se ergue revelando os “matáveis” que ora veste farda, ora não veste nada.
Quando este território é o caçador, então os índices da violência urbana vão as alturas. Roubos, furtos, latrocínios não param de ser registrados. Nas duas circunstâncias, é a disputa da cidade que se arrasta num jogo desigual e combinado. Combinado com os novos coronéis econômicos, que brincam de ser caçador, sem nunca admitir ser a caça.
Os coronéis da grana são caçadores quando a disparidade da infraestrutura que observo da minha janela não muda de perspectiva. De um lado há opulência. Do outro há negação. Aqui, a paz e a tranquilidade de ruas limpas e seguras. Ali, o intermitente da viatura policial, eternamente ligada, está sempre a lembrar o constante peso da vigilância e do controle. Quando o coronelismo é o caçador, resta a caça as migalhas de algum sinal de trânsito. Quando os coronéis caçam, os caçados se obrigam a pedir quando sempre, ou a tomar quando possível. A caça dos coronéis desacredita das regras de convivência social. A caça dos excluídos é a própria descrença.
Nesse ambiente, enquanto os coronéis caçadores são legitimados, suas caças, são ridicularizadas e criminalizadas. Nesse cenário, a voz de uma criança no sinal é sufocada pelo barulho do helicóptero a pousar na sacada do prédio que leva o oportunista travestido de empresário para seu banquete diário.
Por fim, não existe metáfora que resista a boa reflexão. Falo da capital do Ceará, mas certamente está é uma realidade brasileira (des)envolvida. Espero com sinceridade ser capaz de internalizar as palavras de Amartya Sen que abre minha reflexão para quem “a busca por justiça é iniciada, quando se estabelece a percepção da injustiça.”
Certamente estaremos aí a enfrentar a cidade desigual.