Os palestinianos estão a ser sujeitos a uma violência genocida. E todos estamos a ver.
Em Gaza, milhares de pessoas foram mortas, dezenas de milhares estão feridas. Mais de um milhão deslocados, muitos a ser refugiados pela segunda vez. Hospitais, escolas, universidades, padarias, igrejas e mesquitas estão a ser bombardeados. Médicos, professores, jornalistas, bombeiros e equipas de proteção civil estão a ser atingidos. Israel promete intensificar estes ataques. Na Cisjordânia, os palestinianos continuam a ser confrontados com violência dos colonos (700,000+ na Cisjordânia) e incursões militares. Mais de 90 pessoas foram mortas e 1000+ detidas. Na Europa e na América do Norte, os que expressam solidariedade com a luta pela liberdade da Palestina, estão a ser intimidados pelas autoridades de imigração, ameaçados com deportação, e correm o risco de serem detidos, entre outras medidas que procuram silenciar estas manifestações.
@AlnaouqA, X, Mahmoud Alnaouq num campo montanhoso, local desconhecido, 23 Outubro, 18h25, https://x.com/AlnaouqA/status/1716506017247174658?s=20.
O seguinte texto foi escrito pelo tradutor e escritor palestiniano Mahmoud Alnaouq, membro do coletivo We Are Not Numbers (Nós não somos números). Este coletivo resiste a redução da existência palestiniana a números e estatísticas. We Are Not Numbers publica sobre as vidas, histórias, ambições, sonhos, esperanças e experiências do povo palestiniano.
Mahmoud é irmão de um dos fundadores do We Are Not Numbers, Ahmed Alnaouq. Mahmoud e Ahmed perderam um irmão devido aos bombardeamentos israelitas em 2014 e a mãe morreu em 2020 depois de Israel ter recusado autorizá-la a sair de Gaza para receber os cuidados médicos que necessitava para sobreviver.
Dia 22 de outubro, Ahmed partilhou que o seu pai (Nasri), dois irmãos (Muhammed e Mahmoud), três irmãs (Walaa, Alaa e Aya) e muitos sobrinhos (Bakr, Basma, Omar Raghad, Islam, Sara, Abdullah, Dima, Tala, Nour, Nasma, Tamim e Malak) - todos com menos de 15 anos de idade - foram mortos enquanto dormiam.
Picture 2 @AlnaouqA, X, irmãos, irma, pai e sobrinhas do Ahmed Alnaouq, 23 Outubro, 8h45. https://twitter.com/AlnaouqA/status/1716360157645414815?s=20
O Ahmed publicou esta fotografia recente da sua irmã, dois irmãos, pai e sobrinhas - todos morreram. Mahmoud está à direita, com uma camisa azul-cinza. Tinha 25 anos. Ele devia estar vivo.
Este texto faz parte de uma série de publicações de textos traduzidos para português sobre a Palestina e palestinianos. As hiperligações dos textos originais estão disponíveis no título de cada texto.
Uma História: O Custo do Protesto
Mahmoud Alnaouq
18 Dezembro 2018
Logo de manhã cedo, quando ia para a universidade, costumava ver Yaser Alaklouk no seu caminho ao trabalho, vestido com a sua farda de trabalho e com uma pá na mão. Caminhávamos juntos até ao fim da rua, conversávamos sobre os meus estudos e o seu trabalho, sobre os meus pais e os seus filhos. No fim da rua, cada um de nós seguia o seu próprio caminho, desejando boa sorte um ao outro, conforme é costume na Gaza.
Yaser tinha uma vida difícil, o que se reflectia no seu rosto. Desde que terminou o liceu, tinha trabalhado como agricultor ou nas obras - em qualquer sítio que conseguia arranjar emprego. Aos 34 anos, parecia que tinha mais de 55; cabelos brancos cresciam entre o seu cabelo preto, com rugas profundas no seu rosto.
Notícias
Há cerca de cinco meses, um dos nossos vizinhos disse-me que o Yaser estava no hospital em estado grave. Senti-me tão chocado que fiquei sem palavras. Disseram-me que Yaser tinha sido baleado durante a sua participação na Great March of Return (Grande Marcha do Retorno). Ele ficou com a perna esquerda ferida por uma daquelas balas explosivas de que temos ouvido falar e as quais nos metem medo.
A notícia espalhou-se rapidamente pelo nosso bairro na rua Abd Alkareem Alaklouk, em Deir ah-Balah, situada no centro da Faixa de Gaza. Todos começaram a rezar por ele. Os seus familiares, vizinhos e amigos encheram o hospital, todos querendo mostrar apoio a ele e à sua família.
Yaser ficou internado no hospital durante três semanas até ter alta. Pensei que o pior já tinha passado, mas estava enganado. Os vizinhos contaram-me que todas as noites despertavam com o som dos seus gritos de dor. Eu sabia que tinha de o visitar. Ele ficou muito contente por me ver e por partilhar a sua história.
Porquê protestar?
Yaser, a mulher e os quatro filhos (dos 5 aos 15 anos) participaram no protesto que se realizou a leste do campo de refugiados de al-Bureij, todas as sextas-feiras, desde que começou - 30 de março. Al-Bureij, que também fica na zona central de Gaza, é uma das cinco zonas que "acolhem" a Grande Marcha do Retorno. Sempre que ia à manifestação, via Yaser lá ou no autocarro que transportava as pessoas para o protesto.
Disse-me que a única coisa que realmente queria na vida era ter uma vida decente para a sua família e ver os seus filhos crescerem em segurança. E esperava que, se a Grande Marcha do Retorno continuasse, Israel pudesse ser forçado a levantar o bloqueio imposto a Gaza.
Yaser e o filho mais velho costumavam sentar-se numa pequena subida perto da frente da manifestação, a ver os jovens atirarem pedras aos soldados e as crianças abanarem as suas bandeiras. A mulher do Yaser e os outros três filhos não quiseram correr riscos, por isso ficavam na tenda das mulheres, atrás de um monte de areia.
No dia 27 de abril, a 5ª sexta-feira da marcha, não foi diferente de qualquer outra "sexta-feira de protesto". Os manifestantes que tinham sido baleados nos dias anteriores apareceram na mesma com ligaduras e de muletas. Os vendedores estavam lá também; nunca faltaram a uma única sexta-feira, satisfeitos com a possibilidade de ganhar algum dinheiro com a venda de gelados, latas de refrigerantes e frutos secos. Canções patrióticas tocavam vivamente das colunas. Essas canções nunca envelhecem, embora as pessoas as tenham ouvido milhares de vezes.
O momento em que a vida mudou
Essa sexta-feira acabou de uma forma diferente. Yaser estava sentado numa duna de areia, sonhava com o retorno à terra da sua família.
Nesse momento, uma explosão rebentou no ar, um som muito próximo. Inicialmente, Yaser pensou que era uma bomba de gás lacrimogéneo. "Tentei levantar-me, mas não consegui. Olhei para as minhas pernas e vi que a perna esquerda era um monte de carne rasgada e sangue..." Yaser contou-me, recordando o choque do momento.
Ele tinha sido atingido por um tipo de bala que explode dentro do corpo. Os ossos da perna ficaram desfeitos e a maior parte da perna foi pulverizada.
Um grupo de manifestantes carregou Yaser para uma ambulância que se encontrava perto. Chegou ao hospital local em Deir al-Balah, mas foi rapidamente transferido para a unidade de cuidados intensivos do Hospital al-Shifa na Cidade de Gaza, o maior centro médico da Faixa de Gaza.
Yaser precisou de 14,5 litros de sangue. Já foi submetido a duas cirurgias e ainda tem de fazer mais uma. Felizmente, livrou-se de ser amputado, mas nunca vai conseguir voltar a andar da mesma forma.
Yaser tentava esconder a sua dor e depressão, mas os seus olhos diziam-me tudo quando me contou que passou a depender da ajuda humanitária para sobreviver. Já não consegue trabalhar. E não é isso que Yaser, ou qualquer outro homem, quer para si e para a sua família.
"Arrependes-te de ter ido à marcha?" perguntei. "Não! Nunca." Ele respondeu com uma voz clara e forte. "Porque é que me havia de arrepender? Não fiz nada de errado. E continuo a ir à marcha todas as sextas-feiras."