Os palestinianos estão a ser sujeitos a uma violência genocida. E todo o mundo está a ver.
Em Gaza, milhares de pessoas foram mortas, dezenas de milhares estão feridas. Mais de um milhão deslocados, alguns a ser refugiados pela segunda vez. Hospitais, escolas, universidades, padarias, igrejas e mesquitas estão a ser bombardeados. Médicos, professores, jornalistas, bombeiros e equipas de proteção civil estão a ser atingidos. Israel promete intensificar estes ataques. Na Cisjordânia, os palestinianos continuam a ser confrontados com violência dos colonos (700,000+ na Cisjordânia) e incursões militares. Mais de 80 pessoas foram mortas e 1000+ detidas. Na Europa e na América do Norte, os que expressam solidariedade com a luta pela liberdade da Palestina, estão a ser intimidados pelas autoridades de imigração, ameaçados com deportação, e correm o risco de serem detidos, entre outras medidas que procuram silenciar estas manifestações.
O seguinte texto foi escrito pelo jornalista palestiniano Yousef Maher Dawas, membro do coletivo We Are Not Numbers (Nós não somos números). Este coletivo resiste a redução da existência palestiniana a números e estatísticas. We Are Not Numbers publica sobre as vidas, histórias, ambições, sonhos, esperanças e experiências do povo palestiniano. Yousef foi morto, juntamente com vários membros da sua família, por um míssil que atingiu a sua casa na cidade de Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza. Para além das suas obras jornalísticas, Yousef estava a estudar para ser psicanalista. Ele devia estar vivo.
Este texto faz parte de uma série de publicações de textos traduzidos para português sobre a Palestina e palestinianos. As hiperligações dos textos originais estão disponíveis no título de cada texto.
Quem pagará os 20 anos que perdemos?
Yousef Maher Dawas
14 Janeiro 2023
As pessoas detestam silêncios incómodos - o momento em que uma conversa pára e um vazio preenche o espaço de uma forma desconfortável. Por isso, naturalmente, fazem tudo o que podem para os evitar. No entanto, não é esse o caso em Gaza. Gostamos do silêncio - porque significa uma pausa da morte e da destruição. Pelo menos até ser abruptamente quebrado pelo som dos mísseis que fazem as nossas casas balançar e os nossos corações dançar com medo.
É o primeiro dia da celebração do Eid al-Fitr, em maio de 2022 e estou em casa da minha família, onde vivo com os meus pais, irmãos e irmã. É o início da noite e o céu está cor-de-rosa do pôr do sol.
A tranquilidade da noite é rompida por um forte bombardeamento. O barulho das explosões quebra o silêncio e penetra os meus ouvidos, enquanto os clarões de luz queimam os meus olhos. Estou em choque. Um míssil projecta luz nas paredes, acompanhado por um trovão furioso. Há um atraso entre o som da explosão e a luz do impacto. Salto com medo e ranjo os dentes quando o míssil atinge o seu impacto.
Naquela noite, estávamos todos nos nossos quartos, mas à medida que os bombardeamentos se tornavam mais violentos e frequentes, juntámo-nos em busca de consolo numa sala comum no meio da casa. Isto trouxe-nos uma falsa sensação de segurança. Claro que sabíamos que não estávamos seguros, mas preferíamos morrer juntos do que sozinhos.
Estava a comer um pouco de chocolate para ajudar a acalmar a minha ansiedade, um hábito de infância que se manteve comigo. A minha mãe levantou-se para fazer café e distrair-se da situação. Mas eu disse-lhe que ia eu, queria que ela ficasse segura no quarto com os outros. O bombardeamento no meu bairro era intenso e sabíamos que um míssil podia atingir a nossa casa. Fui à cozinha com a esperança de que, se fosse a nossa vez de sermos atingidos por uma bomba, isso acontecesse depois de ter feito café. Por sorte, nenhuma bomba atingiu a casa, pelo que consegui encher a cafeteira e levá-la para os outros.
Tentámos distrair-nos da situação aterrorizante e continuámos a celebrar o Eid, tocando música, comendo chocolates e bebendo café. Nessa noite, ninguém dormiu até que o sol nasceu.
De manhã, o meu pai recebeu uma chamada. "Bom dia." Achei que era uma coisa estranha de se dizer, porque não era um bom dia. Será que ele o disse por hábito ou por estar grato por nenhum de nós ter sido morto naquela noite?
"Um momento e já lá vou ter", acrescentou, e sem hesitar levantou-se e saiu de casa a correr. Quis perguntar-lhe o que tinha acontecido, mas ele foi demasiado rápido e desapareceu. O resto da minha família ficou nos seus quartos a tentar descansar.
O meu pai era um homem corajoso e sempre se preocupou connosco. Eu sabia que, quando ele saía para o perigo, voltava sempre, independentemente de quem estivesse à esquina ou do que estivesse a voar por cima de nós. Já tinha sido preso e detido por defender as suas terras com pedras contra os tanques e as armas do nosso inimigo. Cresceu como agricultor no terreno que pertence à nossa família há quase um século, desde 1925. Pertencia ao meu bisavô e foi herdado por várias gerações.
Depois de algumas horas, o meu pai voltou. Fiquei aliviado por o ver voltar a casa outra vez. Mas alguma coisa não estava bem. O seu corpo estava dobrado e tinha a postura de um homem idoso. Nos seus olhos tristes vi lágrimas secas.
"As nossas árvores tornaram-se cinzas." As palavras eram pesadas ao sair da boca dele. Um silêncio doloroso estendeu-se pela casa antes de ele acrescentar: "Eu plantei essas árvores, cuidei delas e reguei-as com as minhas próprias mãos. Semana a semana. Mês a mês. Ano após ano. Vi as folhas e os ramos crescerem." Ele respirou fundo e continuou num tom mais baixo enquanto tentava conter as lágrimas. "Estas árvores eram mais velhas do que tu, Yousef."
Fui para o meu quarto para fugir à realidade chocante de que as terras da nossa família, que foram passadas de geração a geração, tinham sido destruídas. Abri o meu portátil, coloquei os fones e, de forma desafiante, pus o videojogo mais barulhento que consegui encontrar. Isto ajudou a bloquear o som dos choros do meu pai e do bombardeamento lá fora.
A maioria dos habitantes de Gaza têm a sua própria forma de procurar um refúgio na sua mente. O meu era jogar videojogos. Eu sabia que muitos jovens em vários países do mundo estavam a jogar o mesmo jogo que eu - mas por diversão, não para escapar da morte. Fiquei com esse pensamento durante algum tempo.
Passaram-se algumas noites e a guerra acabou por ser suspensa. Um cessar-fogo foi acordado e os bombardeamentos deixaram de cair do céu. Mas a destruição tinha deixado algo morto no coração da minha família - uma parte significativa da nossa história tinha sido destruída. Eu sabia que muitos outros habitantes de Gaza tinham sofrido ainda mais, como sempre acontece. Os bombardeamentos mataram muitas pessoas, deixando crianças órfãs e destruindo famílias. Algumas pessoas foram enterradas debaixo das suas próprias casas, enquanto outras foram mortas nas ruas. Alguns ficaram mutilados e perderam partes do corpo, enquanto muitos de nós, que ficámos para trás, perdemos um pedaço da nossa alma.
Não queria ir ver os nossas campos destruídos. Não tinha qualquer curiosidade em ver as minhas memórias reduzidas a cinzas. A última vez que lá estive, sentei-me debaixo das oliveiras com os meus amigos a comer za'atar, pão e azeite. Bebemos chá, assámos milho e apanhámos fruta. Ainda consigo sentir esses sabores e o cheiro do ar.
Mas agora, três buracos deixados por bombas atormentavam essas memórias. Deixaram areia cinzenta-escura e os restos de troncos e ramos de árvores queimados. Árvores que tinham dado frutos como azeitonas, laranjas, clementinas, nêsperas, goiabas, limões e romãs. Pus as mãos sobre o meu coração para que não caísse do meu peito e senti esses três buracos dentro de mim.
Este último ataque na Gaza destruiu uma importante parte do nosso passado. A história da nossa família. O nosso património. "Mas quem somos nós sem um passado ou uma história?", perguntei-me.
Tentei confortar o meu pai e disse que a terra iria recuperar e que poderíamos trabalhar com o apoio das Nações Unidas para replantar as árvores que perdemos.
"Mesmo que alguém nos ajudam a reparar os danos e a plantar novas árvores, quem é que me vai devolver os anos que passei a cuidar delas e ajudá-las a crescer? Quem é que nos vai pagar os 20 anos que perdemos?"
Um silêncio incómodo instalou-se entre nós, enquanto ambos ponderávamos a natureza simbólica da nossa perda.