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altant alaswad, ou a sobrevivência dos pirilampos
AN Original
2023-10-24
Por Bruno Costa

"Seria criminoso e estúpido colocar os pirilampos sob um holofote no intuito de os observar melhor. Tal como de nada serve estudá-los depois de mortos, espetados com alfinetes sobre uma mesa de entomologista ou olhados como coisas antigas, aprisionadas em âmbar desde há milhões de anos. Para conhecer os pirilampos, é preciso vê-los no presente da sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar, vivos, no coração da noite, ainda que esta seja varrida pela luz feroz dos holofotes" (Didi-Huberman, 2022, p.30).

 

Imagem que procura acompanhar o movimento levado a cabo por manifestantes palestinianos/as, optando por devolver o olhar às forças policiais coloniais, que vigiam e registam um protesto (e os/as manifestantes) levado a cabo num bairro com o nome de Colónia Alemã, localizado perto do porto da cidade de Haifa. Fonte: Bruno Costa (2022).

 

Quando um/a amigo/a me contactou passados vários meses desde o nosso último encontro, com a urgência de partilhar o espaço de escrita altant alaswad, senti a alegria e o estranhamento presentes num momento de reencontro. Mais tarde, quando me deparei com esses lampejos em forma de ensaios, senti o mesmo impulso de os partilhar com o mundo no idioma em que me expresso. Eles são interiores, fundem palavra, imagem, experiência, carne e desejo, eles ardem a (e em) quem os escreve(u) e, por experiência própria, a (e em) quem os lê(u), mesmo sem o domínio de todas as palavras desenhadas no ecrã. Sei que no ato de traduzir trechos dessas imagens-palavra, elas me vão escapar e aparecer sob outras formas, espero que, ainda, com semelhante potencialidade. Mas também sei que, mesmo sem o seu domínio (e porque havia de querer dominá-las?), elas se manifesta(ra)m como potência transformadora no processo de leitura. Sempre escorregadio, o ato de tradução como ato de transformação –das palavras, do texto, mas também de quem traduz e de quem lê– acontece como uma cadência que une a experiência corporal de quem, mais tarde, escreve e o meu (espero que o nosso) contacto com essas palavras-experiências quando as leio (lemos). Nesse sentido, a minha única preocupação foi a de não impor significados que se afastem demasiado das experiências do/a autor/a e que tornem os textos mais próximos do meu conforto, sabendo, no entanto, que a minha posição interfere sempre, de algum modo, nesta leitura que faço deles.


altant alaswad busca uma unidade marginal. altant (الطنط), ou bixa, é um termo pejorativo que, quando apropriado em conjunto com alaswad (الأسوَد), ou negr/o/a/itude, forma um outro ser e um outro fazer. Elas contaminam-se como geradoras de, ou gatilhos para discussões, mas, sobretudo, como posicionalidade(s) revolucionária(s). A sua é uma escrita pessoal (por vezes desconfortavelmente íntima) que nunca abdica de ser política e, ao mesmo tempo, se dissimula como experiência multitudinária, recusando assumir o nome individual como expressão de uma identidade sofredora sem saída. Esse caráter multitudinário da escrita estende-se, antes, como crítica e desejo(s) mobilizado(re)s, como imagem e método partido, transitório, transdisciplinar e interrelacional. Um sentir-pensar-escrever que parte do real e do sensorial, na sua “enorme complexidade, especialmente num lugar como a Palestina”  –espaço-tempo que perturba qualquer leitura dicotómica e normativa, pela sua composição sobreposta e multidirecional, atravessada pela dor e pela extrema violência de quem procura sentido e esperança numa luta quotidiana que se expressa como ato (coletivo) em forma de poema, de pedra ou de Intifada. A proposta (ou o propósito) deste lugar de escrita e discussão é o de abrir espaços para “ideias ausentes das discussões públicas na, ou sobre a, Palestina”, como um “diário” que decompõe as barricadas a partir do seu interior. Fá-lo de uma forma fugidia, mas evita distanciar-se delas, tanto por impossibilidade como por escolha, e recusa o espírito voyeurístico de quem analisa sem nunca querer ser visto/a.


Esse lugar de uma escrita sempre interrompida começa por me (nos) localizar em Jerusalém / al-Quds, a realidade –forma e imaginário de cidade– que molda aquilo que está por vir. No primeiro ensaio, intitulado “Jerusalém, virilidade, escrita e morte”, o/a autor/a situa um corpo –o seu, feito de carne, e o da cidade, feito da mesma matéria, mas também de pedra e de betão– atravessado por dinâmicas de violência colonial partilhadas com muito/as outros/as palestinianos/as, mas cuja finalidade é a sua fragmentação, através da difusão de mecanismos burocráticos, biométricos, discursivos e institucionais. Contudo, é aqui que cólera, prazer, felicidade, melancolia, frustração e medo são experienciados de forma sobreposta e multidimensional por aqueles/as que habitam a cidade e são habitados por ela –“os/as muitos/as que a amam loucamente e não suportam viver nela”. Maio de 2023, data em que o texto foi escrito, revelou-se no/a autor/a como cólera e felicidade ao rememorar o processo de revolta anticolonial e imaginação descolonizadora iniciado dois anos antes no bairro de Shekh Jarrah  e que ficou conhecido como Intifada da Unidade. A repressão deste processo despoletou sentimentos de melancolia e frustração durante o ano de 2022 e apresenta-se, hoje, como medo quando ele/a vê as ruas (es)vazia(da)s da cidade. O seu corpo precário treme quando ele/a escuta o silêncio que precede o mês de junho. Ele/a tem medo de ficar encurralado/a entre a liturgia colonial daqueles/as que irão marchar sobre a cidade –celebrando a ocupação de 1967 como momento de unificação – e os guardiães de al-Quds que, durante o mês do Orgulho, ficam ainda mais atentos a qualquer movimento lido como menos viril. Um quotidiano de exposição à morte.


A relação entre a morte e as vidas queer dá o mote para o segundo ensaio, “Homossexualidade, morte e a romantização do suicídio”. Mais do que exaltar esta relação com um lastro histórico, o/a autor/a complica-a e questiona a sua romantização como único lugar possível de enunciação, sem nunca ignorar as consequências da vigilância e violência institucionais impressas naqueles corpos lidos como “abjetos”. Partindo sempre do seu próprio corpo, como um que convive(u) com o suicídio na forma pensada, escreve sobre a fragilidade inerente à construção de modelos de vida queer “árabes” onde a outra face do heroísmo são (sempre?) a depressão, o suicídio e a morte como norma(s). A ativista queer Sarah Hegazi, que se suicidou durante o mês do Orgulho em 2020, deixou escrito: “mas eu perdoo”. O/a autor/a responde que ninguém deverá ter de perdoar ou de voltar a escrever a partir da posição de Sarah Hegazi.

São estas posicionalidades, fragilizadas pelo encontro com a morte, que se veem inseridas numa disputa entre o projeto colonial de povoamento israelita e os seus críticos. As narrativas e dramas pessoais usados por (e em) vários meios com o propósito de desmontar o relato oficial de Israel como “oásis” liberal queer situado num “deserto” de barbárie homofóbica –parte de uma autorepresentação mais vasta sobre a sua excecionalidade tecnocientífica e democrática– servem qual projeto? Em “Pinkwashing, a mentira da proteção e Israel”, como em outros ensaios, o/a autor/a usa o nosso desconforto como potência crítica. E se Israel fosse mesmo esse “oásis” queer? E se o Estado colonial garantisse realmente um espaço mais seguro para queers palestinianos/as? De que modo é que isso tornaria a sua existência mais aceitável? Como é que isso legitimaria a limpeza étnica da Palestina? Este projeto crítico serve, então, a contínua fragmentação da Palestina e dos/as palestinianos/as ao apresentar uma leitura segmentada do projeto colonial de povoamento, onde Israel é, no fim de contas, normalizado e onde a violência – transformada em violência racista e homofóbica, como negação da (infra)estrutura colonial – se dissipará a partir do momento em que estiverem garantidos os mecanismos liberais de proteção e inclusão (de alguns/mas) dos/as “outros/as”, transformados/as numa minoria dentro do seu próprio território.

Dentro das barricadas desta luta que também é disputada como relato, altant alaswad convida a pensar o pessoal como político, seja na relação de apoio mútuo que ajuda a sustentar os corpos expostos nas ruas, ou naquela onde os sentimentos de alegria e perda apenas têm sentido quando são compartilhados entre camaradas. Em “Barricadas, homossexualidade e o tempo da traição” fala-se da repentina mudança editorial de uma plataforma que, no passado, acolheu a escrita e a visão de ativistas feministas e queer palestininanos/as, rejeitando reduzir as causas e o impacto desta traição apenas às suas dimensões instrumentais e ideológicas. Para o/a autor/a, e apesar daquilo que de “técnico” poderá ter estado na origem desta traição, ela é sentida como fissura num caminho percorrido em comum, como quando se é deixado/a sozinho/a nas ruas vazias de al-Quds, exposto/a ao que poderá chegar e sem os/as companheiros/as necessários para imaginar e partilhar o que está por vir e o que fazer. Qualquer luta política é parte de um processo cumulativo (e em curso) de experiências, conhecimentos, práticas, relações, discussões, alegrias, esperanças e desejos partilhados. A traição expõe de forma clara a articulação entre o pessoal e o político ao desarticular fria e repentinamente esse sonho coletivo de libertação.


Espero, realmente, que a viagem de quem lê altant alaswad comece agora. É pouco comum encontrar uma escrita assim, partida, desconfortável, incerta, onde o/a autor/a se expõe para mobilizar uma crítica sofisticada do que o/a rodeia, daquilo que faz o seu corpo tremer, especialmente num contexto superexposto a narrativas que se ausentam no campo do analítico –porque podem(os), porque o seu/nosso espaço-tempo está desfasado em relação à vida e à morte palestinianas, mesmo quando (com)prometem(os) o seu/nosso privilégio pessoal, intelectual e político. Em “Família, homossexualidade, orgulho e negação”, o curto ensaio que me motivou a escrever este texto, toda essa complexidade se manifesta como autorreflexão sensível sobre as relações familiares. A nível formal, a escrita de viagem reivindica um verdadeiro direito de fuga, não como normalização da teleologia do armário –evento ora trágico, ora libertador– mas precisamente como a sua recusa. As camadas de estranhamento vão-se adensando durante o percurso sinuoso, no decurso do qual se erguem checkpoints mentais, pela imposição da monstruosidade urbana –o corpo da Telavive israelita como ícone de um Orgulho civilizacional– sobre a Jaffa palestiniana. A queeridade do/a autor/a é votada ao silêncio, por ele/a e pelos/as parentes, para que as barreiras não se manifestem. Esse silêncio pode ser lido como silenciamento e negação, mas também como mecanismo de preservação (da relação) e como recusa de fragmentação (familiar e comunitária).


R/existir é um processo atravessado por contradições e complexidades que vão muito além de um momento-evento isolado onde se processa uma transição higiénica e organizada que nos remove de um presente de opressão rumo a um futuro de liberdade. O mesmo pode ser dito sobre a descolonização como processo-sempre-em-curso de “desordem absoluta” (Fanon, 2015, p.40). Os dois processos sobrepõem-se e, nas palavras-imagens de altant alaswad são, na realidade, o mesmo. Ou, por outras palavras, são “imagens-pirilampo […] à beira da desaparição, sempre agitadas pela urgência da fuga, sempre próximas daqueles que, para levarem a cabo o seu projeto, se escondiam na noite e tentavam o impossível, pondo em risco a própria vida” (Didi-Huberman, 2022, p.85). Diria, para concluir, que são a crítica que reencanta o mundo que habitamos ao mobilizar práticas e desejos de descolonização no presente, sempre informadas diagonalmente por memórias de um outro mundo possível.

Referências 
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Pirilampos. Lisboa, KKYM+P.OR.K, 2022 [2009].
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Lisboa, Letra Livre, 2015 [1961].

 


  Bruno Costa é Doutorando do Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global (financiado pela FCT desde outubro de 2019 e com trabalho de campo realizado entre setembro e dezembro de 2022 na Universidade de Birzeit, Palestina), coordenado pelo Centro de Estudos Sociais em parceria com a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.