Em sua recente passagem por Coimbra, no ciclo «Cidadania da Língua», a filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro reacendeu o debate sobre o que está por trás da construção do imaginário de uma língua homogénea - debate que já havia ganhado visibilidade por ocasião do discurso de Paulina Chiziane na entrega do prémio Camões ao falar da necessidade de descolonizar a língua portuguesa. Nos países colonizados, a constituição da história da língua guarda em si as marcas de dominação e da violência de uma cultura sobre a outra. Esse olhar conduziu, ao longo dos anos, não só a um esgotamento de toda a linguagem e historicidade anterior à do europeu, como deixou nesses países marcas indeléveis do racismo e do elitismo linguístico que determinam quem pode ou não falar, quem tem o privilégio de ter a sua voz ouvida.
Fotografia de Tony Cassanelli
A língua como instrumento de dominação e poder colonial foi base para a unificação e uniformização do império, o que implicou a destruição ou subalternização da pluralidade, assim como da riqueza das línguas pré-existentes e de grande parte das suas culturas e histórias locais. Num período pós-colonial, onde a metrópole perde a influência do império e da sua língua, as variantes crioulas, por exemplo, ganham espaço, e tornam-se as versões predominantes da língua em vários desses países, ainda que não sejam oficialmente reconhecidas.
Longe de ser um debate exclusivo de Portugal, esse fenómeno também pode ser observado no inglês dos EUA na cultura Hollywood e no Hinglish versus o "Queen’s English", que ficou minoritário. Dado o exposto, a ideia de que a língua da metrópole deve de ser única e incontestada é um mito nacional construído. No próprio país colonial, seja Portugal ou Reino Unido, existe uma grande diversidade linguística. Encontram-se diferenças regionais e de classe fortes e "erros gramaticais" que, na verdade, são a norma/regra local ou de classe, ainda que frequentemente corrigidos pelas elites intelectuais/académicas como português/inglês errado. É a imposição da língua como forma de ditar o estatuto social de criar hierarquias, discriminar pessoas.
Apesar de Portugal ter conseguido uma unificação ímpar da língua – se compararmos, por exemplo, com a pluralidade nacional/linguística do Estado espanhol - pela estabilidade longínqua das suas fronteiras, também em Portugal a língua é muito mais diversa do que é reconhecida, com variantes e gírias regionais (desde as lhas, do Alentejo ao ‘Minhoto’); diferenças entre cidade e meio rural (veja-se a diferença acentuada entre o Centro e as aldeias de Viseu, por exemplo); entre classes e entre grupos étnicos (fora as diferentes comunidades afrodescendentes provenientes do império na periferia de Lisboa). Não esqueçamos, por exemplo, as comunidades centenárias ciganas deste país, que participaram na restauração da independência da coroa espanhola.
Em um país com pouco mais de dez milhões de habitantes a pluralidade de dialetos, expressões linguísticas e sotaques que Portugal carrega são também trajetórias de resistência e luta. Ainda que o purismo linguístico, sobretudo gramatical, continue a ser uma marca de hegemonia de classe que permanece muito forte, este discurso infelizmente não escolhe cor política e tem se disseminado desde a esquerda à direita, sobretudo na academia.
Mesmo na investigação científica, estudos que defendem a compreensão da língua como um facto social, não são um fenómeno novo. O filósofo e linguista Ferdinand de Saussure (1857 – 1913) já defendia que a linguagem é utilizada como um instrumento de dominação. Considerava que a língua não é individual, antes é uma instituição social que só se realiza a partir da coletividade. Na fala, por outro lado, reconhecia um instrumento de execução individual da linguagem, cuja função é exprimir o pensamento pessoal, sendo por isso plural, multifacetada e peculiar para cada indivíduo que dispõe das combinações necessárias para a realização da língua. Contudo, ainda que a língua seja um facto social e a fala um ato individual, uma não existe sem a outra. Ambas se apresentam como acervo linguístico. Segundo Saussure, são um tesouro depositado pela prática da “parole” nos indivíduos pertencentes à mesma comunidade. A língua é, então, viva, é história, e, por isso, hoje, na linguagem das periferias dos antigos impérios e na resistência das ex-colónias, está a chave capaz de abrir novas portas e novos caminhos de linguagens não violentas e emancipadoras.
Marcela Uchôa é investigadora do Instituto de Estudos Filosóficos (IEF); doutora em filosofia política pela Universidade de Coimbra.