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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
A quem interessa a narrativa da polarização política?
Notas sobre as políticas de negação do racismo e a importância das contra-narrativas
AN Original
2023-06-03
Por Danielle Pereira Araújo

O presente texto é uma versão adaptada da apresentação que realizei no âmbito da Mesa Redonda «Narrativas polarizadas e identidades (in)definidas» inserida na programação do XII Congresso Português de Sociologia.

Ao longo das últimas décadas, testemunhamos uma crescente denúncia, graças aos movimentos antirracistas (principalmente de organizações negras), sobre o caráter supremacista branco das estruturas sociopolíticas e econômicas que moldam as políticas portuguesas (educação, acesso à habitação, segurança pública, direitos sexuais e reprodutivos). Entretanto, as iniciativas estatais parecem estar definindo o combate ao racismo apenas como um assunto de gestão da integração e tolerância à diversidade de identidades, relegando ao debate identitário/cultural processos que estão engendrados fundamentalmente com ordenamento colonial assentado na desumanização das populações negras e ciganas no contexto português. Neste sentido, perguntamos em que medida o enfoque na questão do “pertencimento”, “identidade” e “cultura” tem sido capaz de confrontar privilégios, dinâmicas de apagamento e práticas violentas contra comunidades afro e ciganas?

Partimos do entendimento de que uma das tarefas fundamentais no debate atual acerca do enfrentamento ao racismo, é localizá-lo menos como um debate sobre identidades e mais sobre relações de poder e neste sentido, juntamente com a ativista e pesquisadora Aura Cumes reafirmamos que “[...] Não somos sujeitos culturais, somos sujeitos políticos [...]”. Partimos do entendimento de que perspectivas centradas na “diversidade”, “cultura” e “identidades” têm impedido a emergência no debate público de narrativas que denunciam a dimensão racista das instituições portuguesas, reduzindo a demanda por igualdade advinda dos movimentos negros e ciganos à políticas de “manejo adecuado de la diferencia”.

Perspectivas focadas na cultura/identidade no contexto de combate ao racismo como a interculturalidade, por exemplo, têm se constituído como projetos que visam estabelecer diálogos entre “as diversas culturas” ou ainda para contribuir com “afirmação de identidades” mas que sem a devida historicização e problematização profunda do sistema de desumanização, não desafia, desde o nosso ponto de vista, os pressupostos coloniais sob os quais estão assentados as sociedades no continente europeu. Neste sentido, nos perguntamos em que medida a centralidade dada à identidade e a cultura poderão vir a servir para desmantelar o racismo em sua dimensão institucional e por fim aos privilégios dos quais a branquidade usufrui?

A universidade têm desempenhado papel central na mortificação das produções narrativas negras e ciganas na medida em que reitera ano após ano o compromisso com a contação da história do colonizador, na manutenção dos canônes europeus, na escolha das referências eurocentradas assim como na reprodução de práticas pedagógicas que desqualificam o poder da história oral, da música, e de tantas outras cosmogonias produzidas fora do eixo europeu. Neste sentido, se cabe ao estado o papel de manejar a gestão “dos sujeitos culturais” por meio das políticas de caráter intercultural, é na academia que encontramos uma extensa produção de conhecimento que tem priorizado a dimensão identitária-cultural no debate, apontando a interculturalidade como principal, senão único, projeto político possível para os povos afrodescendentes e ciganos no contexto português.

Outro ponto fundamental na construção de contra-narrativas é que esta luta se dá no campo da construção da“autoridade”, ou dito de outra forma, quem tem autoridade para definir “o outro” como “outro identitário, racial” ao mesmo tempo em que assume para si uma identidade não-marcada (por raça, classe, gênero) e portanto universal? Este é um ponto central se quisermos compreender a dinâmica que atravessa as relações entre educação antirracista, por exemplo, as demandas antirracistas por contra-narrativas e relações de poder, pois como referido por Mogobe Ramose“o fundamento da questão pertence à autoridade [...]. Quem quer que seja que possua a autoridade de definir, tem o poder de conferir relevância [...] ao objeto definido”. E pergunto: atualmente, nas mãos de quem está a autoridade para conferir relevância? Qual cor, raça, gênero, classe?

O processo de construção de contra-narrativas, seja no debate político institucional, seja na academia, estão atravessadas pelo apagamento e negação sistemática da história e das memórias de resistência assim como da produção de conhecimento dos povos negros e ciganos na constituição da história oficial portuguesa pois estes “outros” não estão autorizados a definir, nomear. Diversos são os exemplos dessa desautorização que busca mortificar as contra-narrativas em Portugal: a invizibilização do extenso debate em torno do Museu da Escravidão e da revisão dos manuais escolares, a reprodução de narrativas acadêmicas que negam as vozes das pessoas das comunidades afro e ciganas no contexto dos debates sobre segurança urbana e criminalidade, a indiferença da academia em relação ao necessário debate sobre as políticas afirmativas no ensino superior, a invisibilização de iniciativas afro em torno de práticas educacionais comunitárias (como o Grupo de Teatro do Oprimido de Lisboa-GTOLX) assim como a criação de espaços de debate e de plataformas digitais geridas pela comunidade afrodescendente (PlataformaGueto, Afrolink, Bantumen) que seguem, de modo geral, apartadas do diálogo com a academia.

A discussão sobre a emergência de contra-narrativas tem sido acompanhada no contexto português (e em outros, como no Brasil) pelo entendimento de que estamos a testemunhar um processo de polarização social e política, entretanto entendemos que a construção da narrativa de “polarização” nos tempos atuais relacionada, direta ou indiretamente com o discurso do perigo da ascensão da extrema direita, dentro e fora de Portugal, é um processo que, desde o nosso ponto de vista, acaba por esvaziar o caráter estrutural, histórico e transpartidário do debate sobre o racismo. Este tipo discurso, que têm atravessado media, academia e Estado, está perpassado, desde a perspectiva da luta antirracista, por um imaginário civilizatório eurocêntrico pautado em uma crença de que a consciência moderna ocidental é necessariamente liberal e afeita ao pluralismo.

A ampla aceitação da narrativa da polarização parece revelar como o recurso à este tipo de enquadramento, além de evadir-se do debate acerca da construção da ideia de europeidade conectada ao colonialismo e assente nas ideias de universalismo, neutralidade e justiça, também acaba por retomar uma categorização de indivíduos que são divididos entre os “racionais”, “neutros”, “não afeitos às ideologias” ,”acima dos embates políticos”, “justos por natureza” e os “outros”, “não-racionais”, “ideólogos”, “partidários” ou os que “polarizam” , relegando os conflitos a uma condição na qual sua existência na ordem moderno-ocidental é questionada, sinalizada e sufocada e quando este último recurso não for possível, opta-se por enquadrar os conflitos históricos na narrativa da “emergência da polarização crescente das sociedades contemporâneas”.

A tentativa de equalizar as reivindicações por justiça de um lado do suposto pólo, e a defesa da manutenção das lógicas e práticas coloniais com base em raça (deslocações forçadas, violência policial, exclusão das universidades, acesso aos empregos mal-remunerados) em outro, nos parece produzir o apagamento das conexões históricas entre racismo, liberalismo e colonialismo.

A narrativa da “polarização” parece partilhar da mesma matriz (colonial) que a postura antirracialista, na medida em que assim como o antirracialista procura reforçar a ideia do racismo como excepcional às sociedades atuais, a narrativa de um mundo polarizado parece buscar colocar para fora do horizonte político do mundo moderno as suas históricas divisões, negando-se a rever a própria ideia falaciosa de harmonia e coesão social nas quais parecem estão assentes a narrativa do perigo da polarização.

Importante registrar que reconhecemos o papel desempenhado pelos partidos de extrema-direita na agudização de discursos e estímulos às práticas racistas, entretanto, nossa interpretação do momento atual não compactua com chaves de análise que apostam no excepcionalismo para compreender a dinâmica política portuguesa por entendermos, assim como Ana Flauzina e Thula Pires, que se trata muito mais sobre perceber a “continuidade das estruturas políticas e sociais” do que sobre exceção. É preciso historicizar o racismo e situá-lo na emergência das sociedades modernas e com elas a construção de uma narrativa eurocêntrica sobre o estado de direito, os sistemas democráticos e sobre a própria imagem que o Ocidente criou sobre si no período pós-guerras coloniais.

Em nossa leitura, os conflitos atuais no contexto português (e mundial) precisam ser interpretados a partir das lentes das lógicas coloniais que por seu turno se complexificam nas sociedades modernas, exigindo dos intérpretes sociais um exercício cuidadoso e atento aos contextos para que não confundamos forma e conteúdo na produção de análises sociais, isto é, que o esforço seja de compreender a totalidade histórica dos processos que sustentam o racismo sem perder de vista às aparências que assumem consoante ao contexto. Neste sentido, o diálogo com os movimentos sociais, a escuta ativa e o comprometimento político com a justiça racial precisam ser as ferramentas básicas a quem se pretenda lançar-se nesta tarefa.


Danielle Pereira de Araujo - Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas São Paulo (Brasil). Atualmente é investigadora em pós-doutoramento no projeto POLITICS e militante política.