Este texto apresenta algumas considerações sobre os discursos de membros da comunidade académica de uma universidade pública de Lima - Peru, sobre a produção de conhecimento sobre de raça e (anti)racismo, em diálogo com a culturas académicas e curriculares na sociedade peruana desenvolvidas no âmbito do projeto POLITICS. O Peru é um dos países com maior diversidade cultural da América-Latina, essa variedade remonta a distantes tempos “pré-hispânicos”, tem a ver com a extensão e variedade geográfica do território, assim como de diferentes populações, entre elas, os povos indígenas, espanhóis, afroperuanos/africanos, chineses, japoneses, entre outros, como tem discutido Sandoval et al., (2014).
No ano de 2017, a introdução de uma pergunta de autoidentificação étnica no Censo Nacional do Peru, organizado pelo Instituto Nacional de Estatística e Informática -INEI, é tida como um possível avanço no sentido de desvelar as desigualdades históricas. Os dados do último Censo peruano organizado pelo INEI, considerando, 23 milhões 196 mil 391 habitantes com 12 anos ou mais, mostra que os afroperuanos representam 3,6% desta população. Quando o assunto é a educação, o Censo mostra que do total de 772 mil 332 pessoas que se autoidentificaram como afroperuanas com 15 anos ou mais de acordo com o nível de escolaridade, 355 mil 259 declararam ter concluído o ensino secundário (46,0%), 194 mil 921 indicaram ter o ensino primário (25,2 % ); Afirmaram que 181.223 pessoas tinham ensino superior: 92.453 não universitários (12,0%) e 88.770 universitários (11,5%); por fim, 37 mil 709 (4,9%) afirmaram não ter nenhum nível de escolaridade e 1 mil 976 (0,3%) tiveram estudo inicial. Além disso, foram encontradas 1.244 pessoas (0,2%) afro-peruanas que indicaram ter estudado educação básica especial (INEI, 2018). O que sugere que o acesso à educação dos afroperuanos no Peru é preocupante.
O estudo de Silva e Coelho (2021)mostra que a população afroperuana permanece invisibilizada na maioria dos estudos académicos acerca do debate do racismo na sociedade peruana. Mesmo considerando, que a população afroperuana tem uma luta histórica por visibilidade política, e acerca da produção de conhecimento sobre raça e racismo. Para estes autores, a produção do conhecimento é um campo em disputa na sociedade peruana, onde a universidade, ao reproduzir uma educação ocidentalizada, perpetua a hierarquização do saber. Também deve-se levar em conta que a produção teórica e histórica não tem refletido sobre a centralidade da escravidão racial no Peru para entender a conformação racial e o racismo na atualidade.
As análises mais recorrentes se detêm a debater a situação do mestiço ou do “cholo”, e as ambiguidades na relação com as formas contemporâneas de racismo no Peru em relação aos povos indígenas. A população “chola” foi uma das principais protagonista e agente do processo de mudança no Peru após a Segunda Guerra Mundial, formando um novo contingente de assalariados urbanos, criando movimentos sindicais, povoando o sistema educacional e os bairros periféricos peruanos e, que passaram a representar a experiência social, cultural e simbólica central da última metade do século XX peruano, como discuti Anibal Quijano.
Embora não seja possível afirmar, porque não tivemos acesso aos dados da população afroperuana distribuída por universidades entre públicas e privadas, poderíamos “supor” que uma grande parte dos estudantes afroperuanos estudam em instituições privadas. De um lado, há de se considerar a distribuição territorial que pode “sugerir” a relação da população afroperuana e o acesso à universidade. De outro, notamos a escassez de políticas públicas, sociais (espaços onde vivem os afroperuanos), económicas (acesso a emprego), segurança (nível de criminalização da juventude), e educacionais, entre outras, derivadas de desigualdades sociais e ao racismo estrutural. “[…]. As manifestações do racismo são múltiplas. Onde povos racializados (negros, afroperuanos, indígenas) são grupos mais empobrecidos, explorados e vulneráveis. O desemprego ou a carência de serviços de educação ou saúde os atingem com muito mais força”. Além disso, são discriminados nas instâncias de participação política e no exercício da democracia. [...]. O racismo é, inclusive, um problema de caráter ambiental, pois não se respeitam os ecossistemas e territórios onde habitam povos e nacionalidades indígenas ou comunidades negras”, como tem discutido Alberto Acosta (2016,p.16-147).
Ao retomarmos ao campo educacional, observamos que nas instituições de ensino, por exemplo, desde os níveis inicias, outros fatores se somam ao legado da origem (raça), influenciando contra a mobilidade educacional dos alunos afroperuanos (discriminação, racismo). Muitas vezes, o sistema educacional tende a reproduzir as desigualdades e não a contrapo-las. Essa soma de fatores se constitui em barreiras de acesso para a população afroperuana às universidades. Nesse sentido, ressaltamos iniciativas de países latino-americanos, em especial o Brasil, como decorrência das ações afirmativas, que por meio de lutas intensas no movimento negro brasileiro, veio consolidar a política de cotas no sistema federal de ensino superior brasileiro. As ações afirmativas são os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.
Foto: autor, - em destaque Victoria Santa Cruz
Há também uma percentagem muito pequena de académicos afroperuanos, de povos indígenas na sociedade peruana, que por razões estruturais, tem a oportunidade de acessar à educação superior. A presença do racismo, como prática social reiterada, representa barreiras à redução das desigualdades raciais, que só pode ser combatido com a mobilização de esforços de ações específicas. Isto é, políticas públicas educacionais (ação afirmativa) que a médio prazo, possam garantir uma maior equidade de oportunidades, alterando a situação de desigualdade.
Na contemporaneidade, os movimentos sociais e a lutas antirracistas multiplicam-se e fortalecem-se, buscando visibilidade e reconhecimento da história e cultura de grupos racializados, onde a educação se constitui um dos principais ativos e mecanismos de transformação de um povo. Deste modo, a educação é essencial no processo de formação de qualquer sociedade abrindo caminhos para a ampliação da cidadania. Mas esse processo não se limita somente ao campo educacional, é importante um conjunto, de articulação entre processos educativos, políticas públicas, movimentos sociais.
Marcos Antonio Batista da Silva - Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP. Investigador em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra (Projeto 725402 - POLITICS - ERC-2016-COG).