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Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
Esperança e participação anunciam a retomada do processo democrático no Brasil
AN Original
2023-05-15
Por Martha Marandino, Isabel Martins, Andreia Guerra

Ventos de democracia voltam a soprar no Brasil a partir das eleições presidenciais realizada em dois turnos, nos dia 2 e 30 de outubro de 2022. Na ocasião, foram eleitos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin, empossados em 1 de janeiro de 2023, para um mandato de quatro anos. A cerimônia de posse marcou a passagem de um governo autoritário, que durante todo o mandato questionou a legitimidade do processo eleitoral brasileiro, para um governo genuinamente democrático. Junto a isto, o anúncio dos ministérios do novo governo apontou que um caminho de democracia política e social está sendo construído. Depois de quatro anos de destruição da Amazônia e de massacre das populações indígenas e negras, o Brasil terá pela primeira vez um Ministério da Igualdade Social e um dos Povos Indígenas. Além disso, o antigo Ministério do Meio Ambiente passa a ser chamado de Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Foi recriado o Ministério da Cultura e, para o Ministério da Saúde, foi nomeada uma mulher pesquisadora e ex-presidente da FIOCRUZ, rompendo um ciclo de negacionismo científico no governo.


Image - Wikimedia Commons

A assunção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se dá após a chamada transição, um período durante o qual devem ser fornecidos dados e informações para auxiliar o novo presidente e sua equipe a implementar sua proposta de governo. A legislação brasileira (Lei 10609/2002) estabelece princípios para o processo da transição de governo, os quais incluem a colaboração entre o governo eleito e o a ser substituído, a transparência da gestão pública, o planejamento da ação governamental, a continuidade dos serviços prestados à sociedade, a supremacia do interesse público e a boa-fé na executoriedade dos atos administrativos. Regulamenta, ainda, o tempo que será dedicado aos trabalhos e a definição dos Cargos Especiais de Transição Governamental (CETG). A equipe de transição deve, então, ter acesso a dados como: as contas públicas do Governo Federal; as atividades exercidas pelos órgãos e entidades federais; a estrutura organizacional da Administração Pública; os programas, projetos e ações dos órgãos e entidades governamentais; os temas que requerem adoção de providências, ação ou decisão da administração no primeiro quadrimestre do novo governo, entre outros.  No final de 2022, a transição esteve sob responsabilidade do vice-presidente eleito e coordenador da transição de governo, Geraldo Alckmin que, conjuntamente com demais responsáveis, criou 30 grupos técnicos e indicou os nomes dos coordenadores e integrantes de cada um deles.

Desde o ano de 2016, quando a presidenta Dilma Rousseff foi destituída do cargo, a sociedade civil organizada não vinha sendo chamada ou tinha qualquer espaço para manifestar, se opor, propor, discutir e participar da construção de políticas públicas no Brasil. De fato, nos últimos quatro anos, muitos decretos e portarias foram criadas pelo então presidente da República (2018-2022), alterando políticas públicas, que haviam sido estabelecidas, a partir de pressão da sociedade civil por um Brasil mais justo e igualitário.  Assim, nesses últimos anos, presenciamos a construção de políticas públicas que romperam com um movimento, mesmo que lento, da sociedade brasileira por políticas inclusivas e de combate às desigualdades sociais, raciais e ecológicas. Em particular, o papel e contribuições da comunidade científica foram recorrentemente ignoradas na implementação de políticas públicas, com sérias consequências para a gestão da saúde pública e das questões ambientais.

Vimos, com muita satisfação, que, já na transição, a forma de organização e dinâmica de trabalho dos grupos técnicos ratificaram princípios de pluralidade, representatividade e integração de diferentes pontos de vista como necessários à análise e proposição de políticas públicas.  Para a área de Ciência, Tecnologia e Inovação foram escolhidos onze nomes. Entre eles, estava o colega Ildeu de Castro Moreira, professor-doutor do departamento de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC. O professor Ildeu, um dos coordenadores do GT 10 - Ciência Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Social, mobilizou e reuniu cientistas, educadores e divulgadores ligados à C&T em subgrupos para trabalharem na construção de recomendações que pudessem ser levadas para que fossem construídas ações para os 100 primeiros dias do novo governo.

Com relação ao subgrupo “Educação Científica”, coordenado pelas professoras Isabel Martins (UFRJ), Andreia Guerra (CEFET/RJ) e Martha Marandino (USP), foram mobilizadas lideranças da área de Educação em Ciências de todo o país, diretores e diretoras de sociedades científicas ligadas à educação e professores que, juntos, produziram um documento com recomendações sobre o tema. Este subgrupo após intensas discussões e engajamento propôs a revogação de atos do anterior governo que iam de encontro aos princípios de uma educação pública de qualidade, laica e socialmente referenciada. Além disso, propôs caminhos a serem implementados pelas agências de fomento brasileiras com vistas a contemplar a voz de diferentes atores sociais na proposição e execução de políticas científicas e educacionais mais inclusivas.

A valorização e o estímulo à participação de diversos setores da sociedade na análise, elaboração e implementação de políticas públicas, a exemplo do que ocorreu por ocasião da quarta Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (4ª CNCTI) em 2010, são práticas democráticas que precisam ser retomadas. Nesta ocasião, registrou-se a participação ativa de diferentes sociedades científicas brasileiras, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC), trazendo a voz de cientistas, estudantes, educadores, comunicadores e de movimentos sociais organizados, para a construção de um plano estratégico de longa duração (10 anos) para área de ciência, tecnologia e inovação. Nessa conferência, também se destacou a participação de pesquisadores e educadores, que participam das atividades desenvolvidas no âmbito dos mais de 200 programas de pós-graduação da área de Educação em Ciências no Brasil. Esta comunidade produz conhecimentos relevantes para a formulação de políticas públicas para educação e divulgação científica, o que explica e justifica seu engajamento tanto na 4ª CNCTI em 2010, como em 2022 no período de transição do governo brasileiro então eleito.

O engajamento da comunidade científica no período de transição refletiu o entusiasmo da parcela da sociedade brasileira que considerou o resultado das eleições presidenciais de 31 de outubro de 2022 uma vitória da democracia brasileira. Esse espírito de esperança foi reforçado com a posse do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1.º de janeiro de 2023. O anterior presidente se negou a cumprir uma tradição do ato da posse, que é a entrega da faixa presidencial ao futuro presidente. Apesar desta quebra de protocolo, o cerimonial da posse do presidente manteve a solenidade de passagem de faixa. Porém, como o antigo presidente não estava ali para cumprir esse rito, foram escolhidos seis representantes do povo brasileiro para entregar a faixa ao presidente Lula. Assim, uma cozinheira, um líder indígena, um professor, uma catadora de lixo reciclável, uma pessoa com deficiência física, uma criança e um operário subiram a rampa do Palácio do Planalto para executar a entrega da faixa presidencial.

Nós, brasileiras e brasileiros, começamos o ano de 2023 esperançosos e acreditando que a democracia estava assegurada. Entretanto, os atos de vandalismo registrados em 8 de janeiro, com a invasão e depredação dos prédios públicos do Congresso Nacional, do Superior Tribunal Federal e do Palácio do Planalto, mostram que precisamos continuar lutando para que as instituições brasileiras possam estar fortalecidas para conter arroubos autoritários e ditatoriais que insistem em ameaçar nossa democracia. Além disso, nesses três meses de governo já foi possível perceber as tensões entre interesses públicos e privados e entre grupos de orientações políticas e ideológicas distintas em relação à formulação das políticas públicas nas diversas áreas. Neste sentido, recordamos nosso mestre Paulo Freire que, no seu livro Pedagogia da Tolerância, nos adverte que a cidadania não é um presente que políticos ou educadores dão ao povo, mas uma construção política e, portanto, diária, coletiva e consciente.


Martha Marandino - Universidade de São Paulo/USP/Brasil

Isabel Martins - Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ/Brasil

Andreia Guerra - Centro Federal de Educação Tecnológica de Celso Suckow da Fonseca/CEFET/Brasil