Tocou o despertador. Eram 6h30 da manhã e mal abri os olhos revi mentalmente tudo o que tinha que fazer até sair de casa. Virei-me para ela e disse baixinho:
- Mulher, o despertador já tocou. Não te deixes adormecer.
Levantei-me meti os chinelos nos pés. Passei rapidamente pela casa de banho apenas para fazer um chichi aflito. Dirigi-me à cozinha. Tinha deixado uma máquina de roupa a lavar durante a noite e pensei que talvez fosse melhor estendê-la antes de ir acordar os miúdos. Foi isso que eu fiz. Pus água a aquecer para o chá dela, ela gosta mais de chá do que de café, e é sempre bom fazer-lhe um mimo logo de manhã. Fui ao quarto das miúdas mais novas e acordei cada uma delas suavemente. Não queriam levantar-se porque ainda fazia frio e era de noite. Lá as convenci a acordar com umas brincadeiras e a promessa de um pequeno almoço divertido com os cereais de que elas mais gostam. Enquanto elas começaram a falar uma com a outra, o que significava que já estavam acordadas, fui ao quarto do mais velho e da porta comecei a chamar por ele até o acordar. Ele resmungou e olhou para mim e disse:
- Pai, nem um roupão vestiste? Não tens frio?
Dei-me conta do frio e fui rapidamente ao meu quarto buscar o roupão quando já ia de novo a caminho da cozinha. Já eram 7h15 e a minha mulher continuava a dormir sossegadamente. Voltei a sussurrar-lhe ao ouvido:
- Menina são horas de te levantares. As crianças já acordaram e era muito bom se me ajudasses a vesti-las para irem para escola enquanto eu faço o pequeno almoço e adianto o jantar.
Ela resmungou alguma coisa que eu não entendi e abriu os olhos. Saí rapidamente para ir ver das mais novas e ajudá-las na casa de banho a fazerem os seus chichis, e outras coisas mais que precisassem, a lavarem bem os seus genitais, os dentes, a cara, a pentearem os cabelos. O mais velho assomou à porta e perguntou: - Quando é que vocês se despacham, miúdas?
Eu disse que estavam quase, mas que antes de usar a casa de banho fosse perguntar à mãe se ela precisava de ir primeiro ou era melhor ser ele a ocupar a casa de banho para as suas higienes matinais. Mandei as pequenas para o quarto e disse-lhes para brincarem um bocadinho que eu ia terminar o pequeno-almoço e a mãe viria para as ajudar a vestirem-se. Corri para o fogão, pus a carne, que eu tinha deixado temperada na véspera, a estufar na panela de pressão e comecei a aquecer o leite, a por a mesa, a tirar dos armários os cereais preferidos das pequenas, aqueci o pão, tirei a manteiga, fiz o chá para ela e um café para mim. Ao mesmo tempo perguntava em voz alta:
- Meninas a vossa mãe já está a ajudar a vestirem-se? Despachem-se por favor.
Do outro lado só ouvia os risos das crianças e o miúdo mais velho a sair da casa de banho fechando-se no quarto dele. A mesa estava posta e tudo pronto para toda a gente se alimentar antes de sair de casa. Fui direito ao meu quarto e vi a minha mulher sentada na cama a olhar para o telemóvel, a ver os últimos posts do Facebook e as mensagens do Whatsapp. Nem tive tempo de abrir a boca porque ela disse meio chateada, por ter sido apanhada ainda na cama, se bem que já sentada nela:
- Vá, não sejas chato; para com essa mania de quereres fazer tudo à tua maneira. Uma pessoa já nem pode acordar e levantar-se em paz...
Eu disse quase a medo:
- As meninas precisam de ajuda para se vestirem.
Ela respondeu:
- Já vou. Elas podem esperar um bocadinho, não podem?
Saí e olhei para o relógio e já eram 7h40. Nem pensei duas vezes e dirigi-me ao quarto das meninas e vesti-lhes as roupas, as meias e calcei-lhes os sapatos que já tinha separado na noite anterior. Elas riam e faziam caretas e fugiam-me dos braços quando tentava enfiar-lhes as mangas das camisolas ou lhes tentava enfiar os sapatos. Bom, lá consegui vesti-las e penteá-las e até lhes pus aquele elástico com florzinhas que elas tanto gostam nos rabos-de-cavalo que lhes fiz. Levei-as pela mão até à cozinha, sentei-as, servi-lhes os cereais prometidos com leite. O mais velho apareceu já vestido, mas ainda todo despenteado. No corredor vi a minha mulher a entrar na casa de banho. Não parecia apressada, diga-se de passagem. Servi o mais velho, tentei recordar há quanto tempo a carne estufada estava a ferver para desligar o fogão, enchi uma caneca com café e leite, dei umas mordidelas num pão com queijo enquanto ir monitorando a miudagem e o seu pequeno almoço. Já eram 8h e ouvia-se o noticiário da rádio que vinha lá do quarto. Ela já tinha acendido a rádio que é um dos passos da rotina dela de acordar, todos os dias. As crianças estavam a comer bem e eu fui ao quarto ‘puxar as orelhas’ à cama para não deixar tudo desmazelado. Ela entrou com o duche tomado, o cabelo impecável, maquilhada e perguntou se o pequeno-almoço dela já estava na mesa. Eu respondi em surdina que sim e as lágrimas vieram-me aos olhos, mas aguentei-me. Disse-lhe apenas que tomasse conta das crianças enquanto eu me arranjava. Ela olhou para mim e disse:
- Despacha-te então porque sabes que eu tenho que sair porque demoro a chegar ao emprego e não quero chegar atrasada.
Já nem olhei para ela; fui esconder o meu desalento na casa de banho e lá me lavei, fiz a barba e vesti-me o mais rapidamente que consegui. Voltei para a cozinha. As crianças estavam a terminar, a minha mulher via as notícias do dia no smartphone e eu comecei a recolher a louça suja e a colocá-la na pia. Ela disse-me sem levantar os olhos do telefone:
- Olha que eu ainda não acabei de beber o meu chá. Não sejas chato, homem! Tem calma.
Eu saí dali o mais depressa que pude e pedi ao mais velho para vestir o casado e preparar a mochila. Às miúdas vesti-lhes eu os casacos e pus-lhes as mochilinhas às costas. Estava na hora de sair para as levar ao Jardim Escola e deixar o mais velho na escola. Pequei no casaco, na minha mochila, nas chaves do carro e olhei para as horas: eram já 8h20. Bolas, pensei! Lá vou eu apanhar aquele trânsito horrível e chegar mais uma vez atrasado ao emprego! Ainda disse:
- Até logo, mulher.
Ela respondeu:
- Já vais? Precisas de ajuda para alguma coisa?
Eu bati a porta e saí, mas a minha vontade era perguntar-me a mim mesmo para que raio servia aquela mulher na minha vida. Na verdade, esta manhã nem foi das piores. Esperava-me um dia de trabalho em que a minha chefe me ia interromper quantas vezes quisesse para me explicar o que eu tinha acabado de dizer. Parece que se chama womansplaining!
Teresa Cunha - É doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. Co-coordenou os ciclos do Gender Workshop entre 2012 e 2022. Coordena a Escola'Ecologias Feministas de Saberes' em Moçambique e Colômbia. É professora-coordenadora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra, investigadora do Centro de Investigación por la Paz Gernika Gogoratuz, País Basco, investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memórias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: com Boaventura de Sousa Santos Economias de Bem Viver. Contra o desperdício das experiências, Mulheres; Territórios e Identidades vol 1, 2 e 3; Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.