O actual cenário em Moçambique, caracterizado por uma crise profunda devido principalmente à incapacidade do Estado e do governo em responder às principais preocupações e necessidades da maioria da população moçambicana, tais como desemprego, habitação, serviços públicos básicos e alimentação, levará a um período de maior despotismo em Moçambique, por um lado para abafar uma possível revolta popular e, por outro lado, para impor a autoridade do governo.
AFP_Simon WOLHFAHRT
Os regimes autoritários surgem ou se intensificam precisamente quando já não são capazes de manter, democraticamente, a sua legitimidade aos olhos do povo. A impopularidade do governo moçambicano aumentou. O custo de vida e a falta de oportunidades de emprego para muitas/os, especialmente para os e as jovens, minaram a credibilidade do governo. O sector informal da economia, que é forte tanto em zonas urbanas como rurais, tende a ser ilegalizado, especialmente em zonas urbanas, sendo submetidas a uma espécie de fascismo social.
Não são necessárias sondagens para sentir o descontentamento generalizado da população. Nos transportes, nos mercados, nas casas de pasto, nas reuniões familiares, nos grupos de WhatsApp, transparece a impressão de que o governo já não serve as massas e estas estão a ser deixadas cada vez mais à sua sorte.
Este descontentamento tornou-se recentemente mais visível mesmo no aparelho do Estado. O fracasso da chamada Tabela Salarial Única (TSU), um tipo de ajustamento salarial anunciado no último trimestre de 2022 que previa um aumento significativo dos salários dos/as funcionárias/os públicas/os, aumentou a desconfiança entre os e as servidoras do Estado em relação ao governo.
O anúncio da TSU foi recebido com grande expectativa, e que quando concretizado levou ao descontentamento no sector público, uma vez que defraudou as expectativas sobre uma potencial melhoria dos níveis remuneratórios e, pior ainda, coloca em causa direitos adquiridos, o que segundo vários especialistas, é inconstitucional.
Esta situação fez com que sectores importantes como os médicos/as e professores/as do sector público paralisassem as suas actividades durante algum tempo nos últimos meses de 2022. Foi interessante observar como os protestos foram implementados de forma criativa. Por exemplo, professores primários e secundários fizeram greves de zelo e silenciosa. Não deixaram de ir às escolas, mas deixaram de trabalhar em quase todos os casos. As/Os médicas/os entraram em greve abertamente, mas também foram a público para explicar as suas razões e que serviços continuariam a prestar para que a população não se voltasse contra esta classe.
Embora não muito activo, o descontentamento foi também expresso mesmo no seio da polícia e do exército, precisamente os veículos para a materialização da repressão.
Estes ingredientes são suficientes para o surgimento de uma ampla frente de articulação para desafiar seriamente o governo e exigir uma reforma do aparelho estatal e quiçá de mudança do governo. É precisamente por esta razão que o esmagamento desta possível articulação é levado a cabo através de um aperto de medidas e mecanismos autoritários, através de uma repressão mais ou menos subtil. Estes incluem, acima de tudo, mecanismos de propaganda constante e blackout e/ou controlo dos meios de comunicação social, com sérias ameaças à liberdade de expressão que incluem a prisão de jornalistas e activistas sociais e ameaças à sua segurança e à das suas famílias.
Não é coincidência que recentemente tenha havido um recrutamento maciço de jovens para a força policial, que se encontram em grupos a poucos metros de distância entre si a patrulhar as ruas, principalmente das maiores cidades do país e, especialmente, perto de edifícios estratégicos do Estado, nomeadamente os ministérios e outros edifícios de diferente órgãos de soberania.
Não será surpreendente que, em 2023, o orçamento para a segurança e aquisição de armas seja aumentado, em parte sob o pretexto de combater a insurgência no norte do país. Aliás, Filipe Nuysi anunciou já aquisição de mais material bélico com a desculpa da guerra contra o terrorismo.
Como se sabe, Moçambique foi atingido por uma crise de segurança sem precedentes no norte do país quando em 2017 eclodiu uma insurgência na província de Cabo Delgado que foi inicialmente desprezada pelo Estado, mas que gradualmente se revelou um problema extremamente grave.
Após fracassar no controle da situação, Moçambique pediu apoios a forças estrangeiras1, destacando-se as da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) e as do Ruanda. O Ruanda enviou o maior contingente militar, dois mil soldados, em Agosto de 2021, para apoiar as forças moçambicanas que lutavam contra a propagação da insurreição. O Presidente do Ruanda, Paul Kagame, ofereceu esta "assistência" a Filipe Nyusi no âmbito de um acordo bilateral no qual o lado moçambicano garantiu: 1) o acesso à exploração dos recursos naturais pelo regime ruandês; 2) a extradição de cidadãos ruandeses que estavam em Moçambique como fugitivos e que o regime queria prender pela sua oposição ao regime de Kagame. A França financiaria directamente os militares ruandeses, e a União Europeia e Portugal assumiriam a liderança no financiamento da formação militar e do fornecimento do chamado equipamento militar não letal. Em Setembro de 2022, ao Ruanda foi-lhe prometido um apoio, através de pacote de 20 milhões de euros, pela União Europeia. É legítimo perguntar-se quanto do arsenal a ser mobilizado por Kagame será utilizado para combater o Al-Shabaab e quanto será dedicado ao estrangulamento de cidadãos.
Embora seja inegável que as tropas de Kagame ajudaram grandemente as tropas moçambicanas a conter a propagação dos insurgentes, sobretudo na área de Palma e Bacia do Afungi, o que proporcionou algum alívio a Nyusi e às forças de defesa moçambicanas, esta presença ruandesa está a ser utilizada para angariar fundos para uma maior militarização.
A consolidação do autoritarismo em Moçambique não se manifesta apenas nas mais convencionais formas, nomeadamente, a limitação de liberdades democráticas dos e das cidadãs/ãos. Outros desenvolvimentos em Moçambique levam a concluir que a agenda autoritária se alastra a outros sectores, incluindo o sector de políticas do Estado. Um desses sectores é o da terra. Há poucos anos, o governo de Moçambique iniciou um processo de revisão da Política Nacional de Terras, que deverá conduzir a uma alteração da actual Lei de Terras de 1997. A revisão marca uma grande mudança na Política de Terras de Moçambique no sentido de uma estrutura ainda mais neoliberal para permitir a transferência de títulos de terra individuais em condições de mercado e alargar as condições sob as quais as terras das/os camponesas/es podem ser expropriadas/os. As/Os activistas da terra acusaram o governo de prosseguir uma abordagem autoritária, excluindo a participação da sociedade civil e falsificando as consultas públicas. Num artigo académico recentemente publicado2, chama-se à atenção para este de autoritarismo agrário neoliberal. A revisão da política nacional de terras representa um revés para a autonomia e soberania popular da população uma vez que vai permitir a usurpação da terra dos e das camponesas moçambicanos/as em benefício do capital agrário nacional e estrangeiro.
Dada a falta de imaginação política da oposição no país, especialmente dos partidos representados no parlamento, as organizações da sociedade civil moçambicana, incluindo as organizações sindicais progressistas, enfrentam um grande desafio na formulação de uma resposta política para travar o autoritarismo que paira sobre Moçambique.
Notas
1 - Segundo relatórios do ACLED e outras fontes na literatura sobre o conflito, os ruandeses estavam preocupados em assegurar a área de Palma e a Bacia de Afungi para que a Total Energies, que tinha cessado as operações na região, e os outros "parceiros internacionais", incluindo a China, a quem foram atribuídos lotes para exploração de vários recursos naturais pudessem regressar ou iniciar os seus mega-projectos extractivos . As tropas da SADC foram destacadas para outros distritos, e a sua presença tem tido pouco efeito.
2 - Monjane, B. (2022). Resisting agrarian neoliberalism and authoritarianism: Struggles towards a progressive rural future in Mozambique. Journal of Agrarian Change, 1– 19. https://doi.org/10.1111/joac.12525