De modo a colocar utopia no centro do feminismo, como horizonte emancipador, a consciência feminista necessita de uma consciência de classe. Isto significa que o epicentro da utopia feminista deve inscrever-se numa dialética económica-cultural e resgatar, à semelhança do que tem vindo a acontecer em debates recentes no feminismo – ver Cinzia Arruzza e Josefina Martínez – uma análise de classe. Detenhamo-nos sobre a ideia mesma de classe. Várias são as vozes, em diferentes posições do espetro político, que referem o seu caráter obsoleto. Estamos acostumadas a escutar que a classe aprisionou várias das reivindicações feministas e que serviu maioritariamente, em termos político-eleitorais em particular, para mobilizar uma massa de eleitores despreocupada com a feminização e racialização dessa mesma massa trabalhadora. Classe construiu-se como sinónimo de preocupações masculinas e brancas, mas não em si mesmo. Foi parte de um caminho histórico de disputas, o que não significa, portanto, o seu abandono, mas sim a sua mais cuidada examinação. Defendo que construir um discurso de exterioridade de classe no feminismo pode esvaziá-lo e deixá-lo vulnerável aos assaltos que elenquei nas publicações anteriores.
Classe não é um grupo sociologicamente identificável. Somos sujeitos produtores de atividades concretas. Somos o centro de antagonismo social das divisões impostas pelo capital - veja-se John Holloway. Análise de classe incita-nos a pensar nas relações que nos colocam a todos e todas em certas posições com vista à formação de um modo de vida, isto é, de um modo de produção. Classe implica entender que opressões múltiplas são artificialmente constituídas para os próprios desígnios do capitalismo, o que implica controlo e divisão social. A divisão sexual do trabalho, o forjar da separação entre espaço produtivo e reprodutivo, constituem-se ao constituir-se a evolução do capitalismo assim como a luta de classes mesma que é produto da luta contra a acumulação originária que rompe com a unidade patriarcal produtiva-reprodutiva do feudalismo. Capitalismo constitui-se de forma patriarcal, não porque as relações de produção sigam uma lógica patriarcal co-constituinte ou meramente oportunista, mas porque a lógica capitalista organiza as forças produtivas e a reprodução social com base numa ordem iminentemente patriarcal (consulte-se Arruzza). Por conseguinte, cabe-nos questionar: como se feminizou e se feminiza a classe no capitalismo atual? Porque reconhecemos um poder patriarcal organizador e opressor ao capitalismo? Efetivamente pela demarcação do espaço produtivo para o provedor (laboral, fábrica) e espaço reprodutivo para a cuidadora (não-laboral, privado) com desvalorização moral-cultural do segundo. Estas divisões formaram parte do controlo social imposto e subsumido à acumulação capitalista.
A esfera de reprodução torna-se refém da esfera produtiva sendo que a primeira vai institucionalizando-se, em larga escala, em relações privadas-familiares-domésticas, protagonizadas historicamente pela figura feminina cuidadora. Esta cuidadora é dócil e conectada com a natureza. Não está preparada para a atividade intelectual nem para o trabalho físico. A frivolidade definia as mulheres da burguesia em expansão no século XVIII e XIX. Uma mística da natural inutilidade feminina torna-se a aura preponderante das mulheres burguesas. tal como aprofunda Sheila Rowbotham. Carecem das habilidades intelectuais e físicas para afrontar o capitalismo que se estabelecia como capital industrial. O ónus da esfera reprodutiva, que se foi institucionalizando primeiramente, de forma quase exclusiva, sob a forma doméstica, fica atribuído às mulheres, nomeadamente de forma plena às mulheres burguesas.
Mas a vida das mulheres mais empobrecidas e proletarizadas eram inobservantes destes princípios. Não eram mulheres no sentido que a burguesia em ascensão popularizava a feminilidade. Ulla Wikander traçou o percurso histórico das mulheres operárias nos países nucleares da economia europeia desde século XVIII até meados do século XX. A mulher operária era, de forma invariável, força de trabalho e a sua institucionalização reprodutiva-familiar-doméstica muito mais contraditória e irregular. Evidentemente o serviço doméstico, os trabalhos artesanais, as vendas ambulantes, sempre foram tradicionalmente atividades atribuídas às mulheres (preferencialmente solteiras), pois também eles remetiam à esfera doméstica. Mas, a industrialização massiva levou a que sempre que o mercado, a economia familiar depreciada ou os conflitos armados o exigiam, as mulheres ocupavam os lugares ditos masculinos. A importante reivindicação do direito ao trabalho assentou, sem surpresas, maioritariamente numa divisão sexual do trabalho desvantajosa: mal remuneradas, tuteladas pelos seus maridos e entrando constantemente em rota de colisão com aspetos culturais-ideológicos burgueses da domesticidade feminina (i.e., várias vezes, proibiu-se o trabalho noturno e vedou-se a possibilidade de trabalhar a mulheres casadas), o capital sempre usou a seu favor uma reserva de mão-de-obra menos preparada, mas mais barata, apta para fazer trabalhos menos qualificados e árduos.
O que acontece no presente? A força laboral tem vindo a ser cada vez mais precarizada, cada vez mais desarticulada e ainda mais feminizada – veja-se Martínez e Burgueño. A igualdade formal e inserção laboral massiva como assalariadas não conteve a divisão sexual do trabalho nem a opressão, apenas auxiliou na sua reconversão. Várias mulheres encontram-se assimiladas em setores mais informais, com brechas salariais abismais, mais sujeitas ao desemprego, em postos de trabalho precarizados (e.g., setor dos cuidados, hotelaria, serviços domésticos) – em muito associada à regulação do de uma economia assente em serviços que depende amplamente de mão-de-obra barata e migrante. São também elas que estão mais sujeitas ao assédio e à violência, mais desprovidas de tempo para lazer, para disfrutarem da sua sexualidade, para serem mães, entre outros.
Os setores do emprego assalariado feminino fala-nos também de como várias mulheres funcionam como muletas para que outras mulheres possam se libertar da atividade reprodutiva doméstica que supostamente lhes caberia, mas da qual agora se podem “emancipar” através dos trabalhos de merda que o capitalismo tem gerado para sua expansão e sobrevivência. Isto é precisamente o centro da análise de classe: quem são os que mais sofrem com as divisões impostas pelo capitalismo patriarcal? A quem não chegam as utopias mínimas? Quando se reclamam, por meio de modelos de conciliação trabalho-família, menos horas de trabalhos por um igual salário, estas medidas não são universalizáveis num mundo capitalista. Acontece que para que algumas mulheres possam satisfazer esses modelos, outras mulheres se encarregam dessa atividade. Este não é um fazer anulável. É apenas transferido de mãos dentro das próprias dinâmicas do capitalismo, desde a esfera doméstica para os próprios circuitos de valorização do capital, que o rentabiliza para os seus próprios fins: quem termina garantindo a reprodução social imediata da vida de muitos e muitas, a trabalhar mais horas, são outras mulheres, usualmente racializadas e migrantes. Os serviços ditos reprodutivos, usualmente mal pagos e precários, tornaram-nas as proletárias de hoje. Aliado ao mundo destes trabalhos de merda, surge a impossibilidade de pagar pelos seus serviços que sustentem a reprodução das suas próprias vidas e familiares, mais a incapacidade dos Estados em poder provê-los amplamente em serviços públicos, o que significa a persistência de uma “dupla jornada de trabalho”.
Não lutamos contra uma forma de organizar a vida acabada ainda que totalizante. Várias outras utopias tentam domar o curso da história do capitalismo a seu favor; outras tentam precisamente ativar o freio de emergência que Walter Benjamin definiu com o movimento central para alterar o curso da história. Estas forças políticas, e outras tantas que se farão presentes para efetivar a sua própria agenda política, buscam um cenário de impossibilidade do capitalismo, que é ao mesmo tempo a possibilidade da utopia. A nossa luta não cerrou; ela começa agora, todos os dias, todo o tempo. No caso da utopia feminista esta encara vários desafios, nomeadamente a sua própria possibilidade de existência como um imaginário emancipador. Com isto não quero dizer que se devam rejeitar propostas por serem mais ou menos utópicas, mais ou menos potenciadoras de um horizonte emancipador além do capitalismo. Das manifestações do 8M às reformas em matéria de género, das redes de apoio mútuo à sororidade quotidiana, tudo conta, ainda que não em si. Uma reforma em matéria de igualdade de género pode ser bem utópica, enquanto que uma rede de suporte autónoma pode ser reacionária, e vice-versa. Para isso, de início, necessitamos de uma consciência histórica profunda das lutas sociais feministas e uma metodologia de análise de classe. Por outro lado, a prática historicamente alinhada, inscrita em espaços-tempo distintos, determina diferentes potencialidades a curto e longo-prazo. Dá-nos consciência de possibilidade e dialoga diretamente com a direção política que se estabelece a partir delas. O objetivo imediato é dignificar a vida das mais precarizadas, das que são despejadas de suas casas, das que são tratadas como putas, das que são vítimas da violência sistemática, da exploração laboral, da misoginia, etc. A questão está em como a partir destas estratégias, destes problemas, destes espaços-tempos concretos, destas possibilidades coevas, poderemos catapultarmo-nos em direção a um horizonte maior. Sabemos ao que vimos e ao que vamos.
Mónica Soares é mestre em psicologia da justiça (FEP-UCP) e estudante de doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.