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Reflexão
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Anti-Heteropatriarcado
Feminismo e Utopia: Coordenadas de uma Disputa Política (“Feminismo” Reacionário)
AN Original
2022-12-16
Por Mónica Catarina Soares

Além das forças liberais, encontramos, na atualidade, outra importante força política na disputa pelo feminismo. Conhecemos bem as investidas dos segmentos reacionários, daqueles que assumidamente se entendem como antifeministas ou que tomam debates feministas para expurgarem-se dos seus defeitos políticos e para pugnarem-se pela constituição de um sujeito político alternativo reacionário. Sob a égide de um discurso pseudocientífico de ideologia de género, ou de feminazismo, canalizam a indignação e o mal-estar social, em larga escala gerado por anos de politicas neoliberais de reorganização do trabalho, contra o feminismo e contra outros discursos como o antirracismo, a que chamam a luta cultural – veja-se Agustín Laje. Ao contrário da sua vertente progressista-multicultural, tentam primeiramente descredibilizar uma política formal de compromisso social para fazer face à exploração e opressão feminina ainda que eventualmente possam, nos seus próprios termos de normalização biologicista e de complementaridade da natural diferença dos sexos, defender algumas destas medidas em termos de políticas públicas.

Quer seja a promulgação de licenças partilhadas de maternidade/paternidade quer o igual acesso a cargos públicos, estas medidas tendem, antes de tudo, a ser entendidas como gasto social escusável e/ou uma traição imperdoável à organização natural das diferenças entre homens e mulheres. São assim reformas que devem ser revocadas e, se eventualmente anuídas, estas devem insertar-se numa linguagem e num quadro de ação política ideologicamente reacionário tal como o conceito de feminacionalismo, desenvolvido por Sara Farris, exemplifica e analisa. Para a autora, a defesa dos direitos de igualdade entre homens e mulheres, ou até mesmo de direitos LGBTQI+, podem ser legítimos em perspetivas ultranacionalistas desde que defendidos a favor da população branca de um determinado país ou contra a barbárie de populações muçulmanas migrantes ou minorias ciganas, entre outras. Também a violência de género é reduzida tão-somente a uma violência intrafamiliar excecional e deve ser tratada em conformidade.

Identificadas com o ideário feminista ou não, há também um número cada vez maior de mulheres que voltam a reivindicar um alinhamento político de celebração da domesticidade, da mulher realizada como mãe e esposa, longe do afã coletivo das velhas lutas feministas que, por regra, são assumidas como sendo extemporâneas. Pode-se agradecer ao feminismo e passar a página. Neste cenário, parece que uma certa misticidade feminina está de volta ao centro do debate, mas longe de ser entendida como uma matriz opressora tal como Betty Friedan eternizou, parece ser agora vista como potencialmente emancipadora. Esta mesma assunção política tende a derivar pontualmente numa hibridização com outros discursos, como é o exemplo da multiplicação constante de ‘mães hipsters’ que vivem em comunhão com a natureza, em sintonia com os tempos e dinâmicas que genuinamente regem o ser mulher/mãe e homem/pai, numa postura claramente desengajada, individualista e essencialista. Muitas vezes, estes discursos possuem até elementos aparentemente antagonistas do capitalismo, mas essencialmente por se objetarem à vida moderna e às suas imposições como estilo de vida. Ao invés de defender-se uma utopia oca em termos de igualdade formal, defende-se uma complicada complementaridade entre os sexos, vista como mais orgânica, longe da azáfama do mundo citadino completamente corrompido pelos valores modernos de vida.
Não se pode claro assumir que o feminismo se reduz a reportórios de desmobilização, de redirecção do conflito social ou de assimilação por velhas e novas direitas, mais mascaradas com um véu de progressismo ou mais orgulhosamente reacionárias e essencialistas. Não obstante, as tentativas de desarticulação do imaginário feminista são inegáveis e têm-se intensificado, operando de maneiras imprevisíveis, ainda que não necessariamente inovadoras: fundem-se elementos políticos antagónicos, naturaliza-se o género ou vive-se como já não existisse, cooptam-se linguagens anteriormente revolucionárias, ataca-se a memória histórica do feminismo, estreitam-se possibilidades de debate, menosprezam-se tensões múltiplas e variadas, promove-se o consumo feminista, individualizam-se as reivindicações, entre outras. A sublimação do impulso feminista parece estar a ser pavimentada desde os anos 70 e 80 do século passado. Igualmente foi a partir desta altura que se popularizou o debate sobre o aparente cataclismo e inevitabilidade da distopia em que aparentemente a luta social foi finalmente decretada como pertencente ao passado. Nada obstaculiza mais o espoletar do futuro do que um mundo em que a disputa principal parece ser entre a exaltação de um mundo de vitórias pós-género e a intromissão da refluência distópica que se alimenta da naturalização do género, em esta última alvoreia ser a mais forte oposição política contemporânea face à primeira. As possibilidades de ação são coartadas e o centro gravitacional das lutas é reajustado e moderado. Cansamo-nos. Perdemos ambições e, às vezes, desnorteamos. Jogamos na defensiva pois sabemos que o mundo pode, todavia, ser muito pior daquilo que é.

Face a este cenário, uma das grandes vantagens do pensamento utópico é a possibilidade de insatisfação profunda com o existente e com as versões mastigadas da utopia mínima. Sabemos que o mundo está longe de ser uma realização dita plena, ou próxima disso, das lutas feministas como anunciado pelas visões neoliberais ou uma degeneração excessivamente feminista, tal como advogado pela direita reacionária. Assim que necessitamos de uma outra forma de organizar o mundo, de uma utopia à esquerda, mais além do capitalismo patriarcal, da opressão quotidiana, da exploração sem fim. Na disputa do imaginário, a utopia é ofensiva. Ela catalisa-nos para um horizonte que é ao mesmo tempo negativo e afirmativo, tornando-o mais tangível, mais concretizável e, possivelmente, mais atraente. Muitas são as perspetivas feministas que têm tentado aproximar as suas ações sociopolíticas a propostas radicais do que significa viver uma vida digna. Não pretendo fazer uma revisão exaustiva das perspetivas feministas que se podem perfilar com o pensamento utópico. Pretendo lançar duas formulações sobre os termos em que o pensamento utópico – para além das utopias mínimas – deve ser percebido de modo a evitar sua precipitação numa atmosfera compensatória, otimista, idealista, muitas vezes de celebração de formas pré-capitalistas de organização social e de imediatismo, por princípio altamente contraproducentes.

Mas, como pensar, em consonância, a utopia feminista? Desde logo, a utopia feminista emana desde uma memória coletiva própria da luta contra a exploração e expressões múltiplas de opressão, que se articula em práticas sociopolíticas concretas, que se projetam num horizonte desde e mais-além do feminismo. Gerda Lerner mostra como a criação da consciência feminista foi sucessivas vezes atropelada e desarticulada, retardando-se constantemente o conhecimento sistemático sobre a História das mulheres ao longo de vários séculos. Centrando-se na Europa medieval até ao final do século XIX, as mulheres viveram reféns da invisibilização epistemológica de uma história opressiva comum e concreta, com exceções assentes na subjetividade de algumas mulheres privilegiadas, que tentavam recontar episódios bíblicos de forma a libertem-se de preceitos opressores ou ligadas pela experiência da maternidade que lhes permitiam uma partilha vivencial mútua. Sem passado não há utopia. Despojadas da continuidade da sua história, as mulheres estavam alheias à possibilidade de construção de um movimento político alternativo. É precisamente da experiência do trauma do passado que se possibilita construir uma negação da negação. A utopia reconhece a continuidade em tensão constante entre o passado, presente e futuro. Ainda não é amanhã: não é só que a consciência feminista tenha sido sonegada; ela também ainda não foi praticada; ela é um processo perene de luta pela possibilidade de ser estruturante da realidade social. Não estranhamos o que foi, estranhamos o que “poderia ter sido” ou o que “ainda não foi” – o famoso “not-yet” de Ernst Bloch  – que está, esteve e estará em constante luta, desde logo porque os nossos inimigos não foram ainda vencidos.

Contudo, esta história da consciência da exploração e opressão leva-nos também a entender que o feminismo não é um objetivo em si mesmo. A consciência da experiência de opressão em certas formas, leva-nos a uma maior sensibilidade de outras formas de opressão. O imaginário político feminista utópico é também ele antirracista e anticolonial por exemplo, visando enfim a destruição de todos os privilégios, de toda a exploração e opressão. Depende assim do que se pode chamar um sujeito político polimórfico, como explica Sergio Tischler, que não é uma mera acumulação de reivindicações, baseadas nas alianças possíveis e sem tensão, dispostas em unidades de equivalência, mas sim um sujeito político que se envolve em várias lutas contra o poder, que é finalmente a mesma luta. É precisamente a utopia de um mundo que leva o capitalismo à tumba, que nos move hoje contra várias expressões de um mesmo modo de vida. 

Crédito da Imagem:kotoffei


Mónica Soares é mestre em psicologia da justiça (FEP-UCP) e estudante de doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.