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Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
Os infindáveis dias de activismo contra as violências contra as mulheres e as micro-políticas de paz
AN Original - Alice Comenta
2022-12-06
Por Teresa Cunha

Quando se está no meio de um conflito armado o que mais se deseja é que as armas se calem e aquela violência que nos amedronta a cada segundo que passa, fere e mata os corpos, termine. Quando cessam os combates sente-se uma enorme sensação de alívio, mas ela é muito fugaz. Na realidade, para as mulheres, a guerra e a violência não termina com o cessar-fogo. Sabe-se que para elas a casa onde vivem e os seus corpos e mentes continuam a ser campos de batalha onde os homens que regressam descarregam as suas frustrações, traumas e a convicção aprendida na guerra que só a violência é a resposta para todas as contrariedades e conflitos. De imediato percebe-se que tudo sobre fazer as pazes ainda está por fazer:

- compreender e lidar com as causas mais recentes e as mais longínquas do conflito
- fazer a reconciliação entre as partes envolvidas
- reconstruir os territórios e as instituições
- criar subjectividades que confiem de novo na eficácia da paz
- trabalhar para restabelecer os níveis de confiança horizontal e vertical
- lidar com e pacificar as memórias
- e tantas outras coisas...

capulana mandada imprimir para uma campanha pela Paz em Cabo Delgado do projecto 'Territórios em Conflito' com o CEAP de Pemba e o Centro de Investigação para a Paz Gernika Gogoratuz

De qualquer modo já sabemos algumas coisas importantes sobre a construção da paz. A primeira é que a paz não é um conceito unívoco e universal, por isso é mais correcto falar no plural: as pazes. A segunda é que as pazes implicam muito mais do que calar as armas seguido da aplicação do modelo da democracia liberal com um Estado de direito, a separação de poderes (legislativo, executivo e judicial) e uma economia de mercado (capitalista). A terceira é que as pazes se constroem actuando nos diferentes níveis do tecido social, desde o local ao global, eu diria mesmo, desde o espiritual e subjectivo até ao nível das instituições multilaterais globais. Outra aprendizagem, que até pode ser um cliché, mas que nem por isso perdeu sentido, é afirmar que não há paz sem justiça nem justiça sem paz! E tanto uma como outra têm que ser pensadas, imaginadas e realizadas pelas pessoas de um determinado território inseridas num tempo histórico e participantes de uma cultura pensada como comum. Sabemos também que as pazes nunca se conseguem através das soluções militares, por mais sofisticadas que possam parecer porque na verdade são máquinas de guerra e de aprofundamento das espirais de brutalidade. Militarizar uma sociedade é reforçar o mito da eficácia da violência e continuar a alimentar e a provocar trauma; é injectar nela mais violências, muitas vezes escondidas nas sombras dos espaços privados ou no (ab)uso da violência pelos Estados. Ganhar uma guerra é sempre uma falácia porque o rasto de destruição e aniquilamento que é deixado apenas prorroga, no tempo, as memórias amargas que alimentam desejos de vingança que são sempre lugares e tempos de inferno que não se desvanece.

Por outro lado, sabemos que as pessoas são mais competentes para fazer as pazes do que para infligir crueldades. Ao contrário do que o senso comum militarista apregoa na ladainha do medo do ‘outro’ e da ‘natureza’ violenta de que a humanidade é refém, na realidade, basta uma observação atenta da vida quotidiana para perceber que o que se passa é, justamente, o contrário. As pessoas, os grupos e as sociedades estão permanentemente a gerir conflitos dos mais variados e a encontrar soluções que não passam pela violência nem por perpetrar dano a outrém. É a cooperação, a comunhão, como diz Freire, que nos salva e nos permite viver. O activo esquecimento ou negligência destas competências humanas é construído e repetido até à exaustão para legitimar aquilo que a indústria e o negócio das armas no mundo precisam para justificar a pulsão destruidora e assassina de um capitalismo que não sobrevive sem matar e sem exterminar.

Ora é a partir de aqui que me dou conta de como a simples reivindicação de incluir mais mulheres nos chamados processos de paz, que a exigência da implementação dos planos titulados de Mulheres Paz e Segurança que têm por base a Resolução CS 1325/2000 da ONU são a parte mais pequenina, ainda que importante da participação das mulheres, de todas as idades e em todo o lado, nos processos de construção das pazes.

Não é uma discussão fácil para mim porque, em parte, o meu argumento parte daquilo que os diferentes tipos de regimes materiais e simbólicos instituídos sobre a ideia da superioridade ontológica e social dos machos fizeram da maioria de nós, as fêmeas humanas: as cuidadoras de quem se espera abnegação, paciência e silêncio. O que me faz avançar no meu argumento não é a defesa de algum tipo de essencialismo que se tenha imposto às mulheres nem de uma responsabilidade especial delas para lidar, com resignação, com os sofrimentos e violências que lhes são impostos. Pelo contrário.

Por isso, faço a mim mesma as seguintes perguntas: o que aprendemos nós, as fêmeas humanas e as demais pessoas que se representam femininas, sempre tidas como subalternas ao longo de milénios durante os quais nos remeteram para todas as invisibilidades, silenciamentos, para nos mantermos vivas? Que habilidades para desviar, amortecer, enganar, desafiar, esconder precisámos desenvolver para lidar com todo o tipo de violências? O que aprendemos nós com a nossa valentia quando gritamos e ocupamos as ruas à frente de todo o tipo de armas, fazemos dos nossos territórios as nossas lutas, nos desnudamos para afrontar as hipocrisias dos homens, quando perseveramos em maternidades rebeldes, quando mantemos vivos os nossos seres amados com os nossos cuidados, o nosso trabalho, a nossa atenção? O que aprendemos nós com a exploração dos nossos corpos, com a violação das nossas vaginas e os sangues podres das nossas vidas destroçadas pelo estupro?

De imediato questiono-me se, de tudo isto que aprendemos, muitas vezes debaixo dos chicotes machistas, alguma coisa pode ser usada para nos libertarmos e libertar o mundo de todas as violências?

Atrevo-me a pensar que muitos desses conhecimentos e competências aprendidas e desenvolvidas nesses sofrimentos todos são fundamentais para pensar a vida de outra maneira. Elas têm sido as bases de micro-políticas de pazes, que necessariamente estão presentes na vida de todos os dias e que asseguram que os conflitos que enfrentamos podem ser transformados de maneira a não perpetuar nem alimentar mais dano, mais dor e mais destruição. Numa relação tão desigual como é a da violência entre quem a perpetra e quem a sofre, a força da resistência que as mulheres aprenderam ao longo dos milénios está, muito para lá, dos modelos de construção da paz sobre os quais os mais reputados intelectuais escreveram e publicaram.

Muito há ainda para se pensar e dizer sobre este assunto. Muitas dúvidas e perguntas estão ainda no corredor das minhas reflexões. Todavia, talvez valha a pena pensar que, se nos mundos das guerras e das pazes se desse prioridade e atenção a essas micro-políticas de paz que as mulheres aprenderam e realizam todos os segundos das suas vidas talvez, quem sabe, a indústria de armamento falisse, as chamadas a mais violência para resolver as que já enfrentamos deixasse de fazer sentido e a nossa Mãe Terra nos fizesse sentir que esse caminho tomado nos daria aquilo de que precisamos: vidas gostosas de serem vividas e que são responsabilidades de nós todos e todas.

Como diz a Aicha lá na aldeia de Natuko em Cabo Delgado: A paz é boa, é alegre, é bonita, é ter passado, presente e futuro. É como quando a gente se junta na machamba para plantar e colher.


Este artigo faz parte da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


Teresa Cunha é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. Co-coordenou os ciclos do Gender Workshop entre 2012 e 2022. Coordena a Escola'Ecologias Feministas de Saberes' É professora-coordenadora da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra e investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memórias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Mulheres, Territórios e Identidades vol 1, 2 e 3; Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.