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Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
E daí? O problema é seu.
AN Original
2022-11-05
Por Iran Melo

Conhecimento de pesquisa não é sabão em pó, controle remoto ou forno micro-ondas, instrumentos que uma pessoa pode usar e da mesma maneira. Conhecimento é parte de nossa compreensão sobre o mundo e parte de nós também nessa compreensão.


Realmente, o problema é mesmo seu.
Vejam só: fazer pesquisa institucionalizada no Brasil é ocupar um lugar bastante privilegiado. De acordo com o último registro da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação, no Brasil, mais de 11 milhões de pessoas ainda não sabem ler. Conforme último censo da educação acadêmica em nosso país (em 2019), somente 20% da população têm acesso à universidade. Nesse cenário, quem é você, pesquisador/a de instituição pública? UMA PESSOA PRIVILEGIADA. É ou não é?

Mas sabemos que esse privilégio não é fruto de sua meritocracia. Até porque, numa nação atravessada por tanto autoritarismo histórico colonial e uma abissal desigualdade de oportunidades, meritocracia é algo tão verdadeiro quanto o coelhinho da Páscoa. Você está onde está por uma série de fatores que fazem delirar as mentes fascistas. Muito provavelmente, foram vários anos seus de desafios. Só você sabe o duro que deu, né? Pois bem, agora que se estabilizou nalgum programa de pesquisa, o que fazer? Seguir aquele mesmo tema da pós-graduação que sua orientadora investigava e você acatou porque precisava da bolsa e queria ter uma experiência a mais no currículo? Colar na tendência dos estudos da área, pesquisando os fenômenos e a corrente teórica que está bombando em todos os congressos internacionais? Fazer aquele trabalho que o cientista fulano de tal desenvolveu em 1995, mas achando que está dando a sua contribuição só porque, em vez de usar os dados que ele usou no texto mimeografado, agora você está abalando por usar textos digitais da internet dos anos 2020?

Essas e outras questões podem rondar a sua cabeça. E vão continuar rondando até que você defina qual o seu problema de pesquisa. Não é fácil, mas este é o primeiro passo para começar a pesquisar. Eis que escolher o problema começa por você refletir sobre justamente quem é você, qual a sua história e que contribuições quer dar com essa oportunidade em fazer um trabalho científico numa conjuntura social tão dura como a brasileira. Podemos dizer que você está com a faca e queijo na mão para possibilitar que seu estudo seja ou reprodutor das mazelas de nossa sociedade – e aí você lava as suas mãos – ou colabore para a transformação real de condições da vida de nosso povo. É como o eterno mestre Paulo Freire nos escreveu e falou tanto, né? Não há meio termo. Ou se educa (e se pesquisa) para a manutenção ou para a mudança. De que lado você está?

Podemos dizer que, se você seguir seu desejo genuíno, não é exatamente você quem escolhe o problema de pesquisa. É ele que escolhe você. Vou explicar. O problema de pesquisa é seu, faz parte de sua ideologia; de seu querer no mundo, que se revela na sua postura como cientista. Pense numa pessoa que elege pesquisar modos de catalogação da fala de um povo indígena que está sendo dizimado e em cuja população só restam 100 falantes de língua nativa. Seja por conveniência de alguém que se inseriu num cômodo grupo de pesquisa (por conformismo de compor este grupo desde a graduação), seja por idealismo de alguém ativista contra o genocídio e glotocídio das culturas indígenas ou seja pela atitude de uma pessoa descendente do próprio povo que pretende investigar, em todas essas possibilidades, a escolha por esse problema não é totalmente deliberada, mas está ancorada na ideologia de quem a fez. Por isso, seu problema de pesquisa É SEU! Vamos assumir?

Ele é seu. E não é nem deve ser pretensiosamente universal. Mas como assim? E as pesquisas não têm de responder a demandas do mundo? Opa! Demanda do mundo? A demanda de uma pesquisa é sempre situada, sempre localizada, mesmo quando não queremos. O seu problema de pesquisa é da sua comunidade, de sua cultura, do seu país, de sua profissão, de seu grupo populacional, porque reflete os seus interesses. E está tudo bem que seja assim. Quanto mais aceitamos que nos envolvemos emocionalmente com nossa pesquisa, mais felizes seremos e mais possibilitaremos ajudar pessoas de nosso campo ao redor, que, por sua vez, em desdobramento – com os resultados da pesquisa – vão poder ajudar outras pessoas mais. Por exemplo – para nos situarmos ainda no campo dos estudos da linguagem – vocês sabem como surgiu a Sociolinguística Variacionista? Sabem por que hoje conseguimos fazer políticas de várias ordens para respeitar diferentes variedades linguísticas que não são prestigiadas? Vou lhes contar esta história. 

William Labov, linguista estadunidense muito sensível à diferença humana, nos anos 1960, recebia várias queixas de professoras da educação infantil da periferia de Nova Iorque, denunciando o baixo desempenho escolar de estudantes negres, latinoamericanes e pobres. Com essas professoras, ele foi investigar o que estava acontecendo e descobriu que o baixo desempenho se dava em função do preconceito que as crianças sofriam por falar um inglês não-padrão. A partir daí, Labov foi identificando as variações do inglês e isso fez com que aquelas professoras enxergassem de forma diferente as falas das crianças e mudassem de ponto de vista sobre a maneira como estavam lidando com as variedades linguísticas na sala de aula. Esse foi o estopim para uma mudança sociolinguística na escola e para Labov sistematizar um campo de pesquisas. De seu universo particular, de sua aldeia, de sua gente... aquelas professoras e o próprio William Labov influenciaram muitas outras pessoas em outros países. É como o efeito borboleta. Conhece?

Não subestime o fato de seu problema ser seu, ser de seu grupo, idiossincrático. Essa é uma premissa decolonial importante. Só posso conhecer os efeitos de uma mudança no resto do mundo se eu conheço a proposta dessa mudança em mim. Tudo parte de mim. É o contrário dos empreendimentos científicos que costumamos ver por aí, que seguem uma lógica típica da modernidade tardia: a homogeneização e a exteriorização dos saberes, como se o conhecimento fosse uma ferramenta para resolver o mundo, e não uma prática que está investida em quem você é. Conhecimento de pesquisa não é sabão em pó, controle remoto ou forno micro-ondas, instrumentos que uma pessoa pode usar e da mesma maneira. Conhecimento é parte de nossa compreensão sobre o mundo e parte de nós também nessa compreensão.

Nosso problema de pesquisa precisa ter a mesma cor de nosso cabelo, a textura de nossa pele. Precisamos ver nele a ranhura de nossas unhas, o cheiro de nosso corpo, o nosso suor e nossos fluidos todos. O problema é nosso sim. Assumamos.


Iran Melo é coordenador do Núcleo de Estudos Queer e Decoloniais (NuQueer) na Universidade Federal Rural de Pernambuco - Brasil.