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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
O movimento pela paz pode contribuir para o redesenho da geopolítica da União Europeia?
AN Original
2022-11-01
Por Mauro Serapioni

  

“Perguntem aos jornalistas por que, com seus escritos, excitam os homens para a guerra: eles lhe responderão que as guerras, em geral, são necessárias, e sobretudo a guerra atual (…)” (Lev Tolstoj, Contra a guerra russo-japonesa, 1904).

Porquê tanto ressentimento e ódio contra o movimento pacifista (MP)?
A agressão russa à Ucrânia desencadeou um movimento antipacifista ensurdecedor e de proporções inimagináveis na Europa. Os pacifistas são rotulados de russófilos, amigos de Putin, colaboracionistas, ideologicamente contra os EUA e a NATO e, claro, insensíveis ao sofrimento do povo ucraniano. Ataques ainda mais intensos do que os foram lançados ao MP, quando este se mobilizou contra as agressões ao Iraque, Sérvia, Líbia, Síria e Iêmen, entre tantas outras agressões, em que o Atlântico Norte e a NATO foram protagonistas, nos últimos 25 anos. O MP italiano, por exemplo, foi ridicularizado, criticado, mas nunca tinha sido atacado com tanta violência simbólica pelos meios de comunicação social e por intelectuais de direita, de centro e até de esquerda, apesar de ter condenado imediatamente a ação militar do governo russo e de ter declarado que está do lado da população ucraniana. Para o MP, os conflitos devem ser enfrentados com ferramentas da política, tendo como objetivo construir uma ordem internacional baseada na segurança comum e no desarmamento, revertendo a corrida ao armamento nuclear.

Na opinião do historiador Tomaso Montanari, Reitor da Universidade para estrangeiros de Siena: “É intolerável que os pacifistas sejam considerados amigos de Putin”. 
Para se estar do lado das vítimas, será necessário assumir-se a lógica binária da informática (0-1) ou as categorias políticas de Carl Schmitt (amigo-inimigo)? Ou será possível, também, criticar a guerra, analisar a sua génese e o seu impacto, sem deixar de distinguir o agressor do agredido? Muitas pessoas afirmam querer o fim da guerra, mas é evidente que as estratégias adotadas pelos países do Atlântico Norte estão a prolongar o conflito, com consequências trágicas para a população ucraniana. O Papa Francisco estava certo quando disse que "cada dia de guerra piora as coisas para todos, ucranianos e russos".

As razões do movimento pela paz
Entretanto, a situação piorou, após oito meses de guerra, com mortes (militares e civis), destruições, milhões de refugiados, e a crescente ameaça de um conflito à escala mundial, e com o risco de uso de armas de destruição maciça. Desfechos e riscos temidos e descritos em detalhe pelo MP, desde o início da invasão.

Neste contexto grave e ameaçador - resultado da recusa dos EUA e da UE em garantir a neutralidade da Ucrânia e a não adesão à NATO, como Sachs, Chomsky e Harvey escreveram; da subsequente agressão da Ucrânia pela Rússia; e de uma resposta exclusivamente militar por parte da NATO, dos EUA e da UE - é urgente recomeçar a falar de paz, de diplomacia, de conferência de paz, de iniciativas humanitárias e do envio de forças de interposição pela ONU. Como relatam Chenoweth e Stephan no livro Why Civil Resistance Works, The Strategic Logic of Nonviolent Conflict, outras experiências históricas de combate às ocupações militares demonstraram que a resistência não-violenta pode ter um sucesso muito mais rápido do que a luta armada. Os autores citam o exemplo do Nepal, em 2004, cuja restauração do regime democrático não decorreu da resistência armada, mas sim de uma breve campanha de resistência civil em massa, assim como o caso do movimento de resistência não-violenta que ajudou a remover com sucesso as tropas indonésias de Timor Leste e a conquistar a independência do território anexado. Na mesma linha, Bartkowski assinala que mesmo uma resistência não violenta fracassada é mais capaz de preservar o tecido da sociedade civil, para depois recomeçar a lutar, como no caso da Checoslováquia, em 1968, e tem uma maior probabilidade de construir a democracia do que a resistência armada, como na Polónia, em 1980.

É, portanto, legítimo - e também baseado em argumentos racionais que visam alcançar a paz, a justiça e a segurança comuns - o direito do MP de se manifestar contra o envio de armas para a Ucrânia e contra a militarização dos países da UE. Em vez de se continuar a enviar armas para alimentar o massacre de ucranianos (mas também de soldados russos), não deveriam ser procuradas outras estratégias? Esta é a questão central posta pelos pacifistas. 

A insustentável leveza da União Europeia
Porque é que a UE não fez nada para prevenir esta agressão? A UE perdeu mais uma oportunidade de mostrar a sua voz independente da dos Estados Unidos. Quais são os objetivos geopolíticos da UE? É lamentável observar a contradição entre a UE da década passada, internamente autoritária, enérgica, protagonista, para impor sanções e controlar a despesa pública dos países em dificuldade económica, face à crise económica, e a UE de hoje, invisível, periférica, completamente submetida à lógica e ao belicismo dos EUA e da NATO, diante de uma crise geopolítica nas suas fronteiras. É inacreditável que a UE não tenha uma posição negocial, limitando-se a enviar armas e a deixar negociar países como a Turquia, que massacrou os curdos e usa migrantes sírios como moeda de troca, e Israel, que perpetua o colonialismo, com anexações e exclusões abissais do povo palestino. Como é que a continuação desta guerra serve à geopolítica da UE? Como é possível que uma potência comercial como a UE desconsidere as ameaças de uma potência militar e geoestratégica como a Rússia, com a qual faz fronteira, e que a sustenta energeticamente? Qual é o papel da UE em relação às decisões tomadas no seio da NATO?

A corrida armamentista da UE
A guerra na Ucrânia já provocou uma corrida armamentista em toda a Europa. O compromisso assumido com a NATO, pelos países da UE, de destinar pelo menos 2% do PIB ao setor militar está a ser cumprido. A Alemanha anunciou a duplicação do orçamento militar: isso significa que, em poucos anos, se tornará na quarta potencia militar do mundo. A rede de organizações italianas Sbilanciamoci tem denunciado que, com o aumento dos gastos militares até 2% do PIB, os países da UE chegariam a investir cerca de 264 bilhões de euros por ano, contra os atuais 198 (um aumento de 33%), o que representaria 25% das despesas de saúde de toda a UE. Seria uma bofetada na cara da população europeia, especialmente dos setores mais desfavorecidos, para além de imoral. Acrescente-se a isso o impacto da guerra no custo de vida da população, mostrando mais uma vez a falta de visão geoestratégica da UE.

O incremento dos gastos militares mundiais da última década - como assinalado pelo relatório do Global Peace Index - implicou um aumento do conflito em 6%, e uma diminuição da taxa de segurança em 2,5%. Mais armas, evidentemente, não garantem a segurança.
Entretanto, observa-se que os EUA, a NATO e os governos da UE, com o apoio da comunicação social, continuam a optar por estratégias militares, armando o povo ucraniano, como pede continuamente o Presidente Zelenski. Como disse recentemente um ex-general do exército italiano: “Biden, Putin, Stoltenberg, Blixen e Johnson, nunca utilizam as palavras, diplomacia, negociação, Nações Unidas”. É curioso que sejam os generais aqueles que fornecem análises lúcidas e indicam o caminho mais curto para a paz.

Quando e como termina esta guerra?
Uma das críticas mais recorrentes feitas ao movimento pacifista é a de este ser impotente diante da agressão da Ucrânia, e de ceder à arrogância da Rússia. Em suma, os pacifistas são censurados por desempenharem um papel de meras testemunhas. Mas, como aponta o filósofo político Francescomaria Tedesco, também a guerra é impotente. Todos são favoráveis ao fim da guerra e à libertação da Ucrânia, mas como é que isso acontece? Só se Zelensky reconquistar todos os territórios do Donbass? Ou deve reconquistar a Crimeia também? Ou só quando a Rússia decidir, de sua iniciativa, abandonar os territórios ocupados? Não existe uma única paz, continua Tedesco: “Existe a paz plena, como o restabelecimento da justiça, mas existe uma trégua de paz como primeira fase e como suspensão das hostilidades”.

Neste prisma, é importante e urgente que haja uma forte mobilização, em todos os países da UE, de movimentos e associações inspirados nos valores do pacifismo e da não-violência, que reivindiquem o desarmamento nuclear e que, no imediato, concentrem os seus esforços em dois objetivos fundamentais: i) um pedido de "cessar-fogo", com possibilidade de interposição de forças da ONU; e ii) a convocação de uma grande conferência multilateral de paz.

É nesta direção que, em Itália, foram promovidas diversas iniciativas e manifestações, nos meses de outubro e novembro, tanto pelo movimento pacifista, como pelas organizações católicas, sindicais e ambientalistas, com o propósito de restituir a voz e o protagonismo social à sociedade civil, sempre mais afetada pelas desastrosas consequências económicas e sociais desta guerra, assim como de reforçar as ações alternativas à guerra. Será que a UE escuta estas vozes dignas que emergem genuinamente da sua população para formar uma inovadora posição geopolítica baseada no pacifismo?

*Photo by Tetiana SHYSHKINA on Unsplash


Mauro Serapioni é doutor em Sociologia pela Universidade de Barcelona (2003). Desde 2009, é investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra onde è docente no programa doutoral "Democracia no Século XXI" do CES e da Faculdade de Economia.