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14º Mundos de Mulheres e o oráculo de Arundhaty
AN Original - Alice Comenta
2022-10-11
Por Teresa Cunha

Another world is not only possible, she is on her way.
On a quiet day, I can hear her breathing.
Arundhaty Roy

2,256 pessoas participaram presencialmente
831 pessoas participaram online

provenientes de 32 países do mundo de quatro continentes: África, Américas, Ásia e Europa.

Destas, 89% afirmaram serem mulheres e 11% identificaram-se como homens

Durante cinco dias uma equipa de 178 jovens voluntárias/os (138 raparigas e 40 rapazes) realizou todas as tarefas necessárias para que tudo corresse bem: acolhimento e credenciamento, informação, equipamentos, logística, interpretação sequencial, transporte, entre outras.

Um acampamento de 360 mulheres de várias associações e organizações de base provenientes das várias províncias de Moçambique congregadas pelo Grupo de Partilha de Ideias de Mulheres de Sofala (GMPIS) e as 50 mulheres da Associação Hixikawe (palavra na língua Changana do sul de Moçambique que significa ‘estamos juntas’), puseram no centro daqueles 5 dias de vida em comum três coisas:  a luta pela paz e a desmilitarização, os diálogos entre movimentos sociais e a academia e o cuidado com a vida.

Uma feira de artesanato e alimentação que contou com 46, artesãs que apresentaram as suas artes, os seus produtos e serviços; mais de duas dezenas de produtoras de alimentos de Maputo, Gaza, Inhambane, Manica, Sofala, Tete, Nampula e Cabo Delgado; dezenas de outras mulheres que confecionaram e serviram refeições à comunidade ali presente.

A organização contou com uma coordenação geral presidida por Isabel Casimiro, um secretariado executivo coordenado por Lázaro Cossa, e as seguintes comissões: Comissão Técnica da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) com o alto matrocínio da senhora Vice-Reitora Amália Uamusse, Comissão Científica presidida por Catarina Trindade e Vera Gasparetto; Comissão de programação presidida por Maira Domingos; Comissão de Logística e Infraestrutura presidida por Leonilde Lumbela e Lídia Muthemba; Comissão da Feira de Alimentação e Artesanato, presidida por Sara Ferreira; Comissão de Saúde e Bem-estar, presidida por Ira Vovos e Emilene Souza; Comissão de Arte e Cultura, presidida por Izzy Gomes; Comissão de Comunicação e Informação, presidida por Juvita N´Govo e Paola Prandini; Comissão dos Movimentos Sociais, presidida por Júlia Mpfumo; Comissão do Voluntariado, presidida por Crisófia Langa e ainda um Grupo de Tecnologia, presidido por Hélio Maúngue.

Durante 5 anos mais de 50 pessoas, lideranças dos movimentos sociais, artistas e intelectuais, estiveram directamente envolvidas no desenho e na organização do 14º Congresso Mundos de Mulheres acolhido pela Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, Moçambique de 19 a 23 de Setembro de 2022.

Sob o lema FeminismoS AfricanoS – construindo alternativas para as mulheres e para o mundo através de um corredor de saberes que cuida e resiste, durante aqueles 5 dias tiveram lugar diferentes actividades e espaços de troca, aprendizagem, cuidado e convivialidade onde todas e todos puderam participar. Para além das feiras e do acampamento, que foram permanentes, aconteceram:

- Místicas sobre; As heroínas, Mãe Terra; Ervas medicinais e Movimentos de Mulheres
- Espaços de Vivências
- Exposição de Fotografias e Pintura
- Lançamento de livros
- Exposição de Pósteres e Cartazes
- Fogueira Feminista
- Momentos culturais com música, dança e poesia
- 57 Oficinárias propostas e coordenadas pelas/os participantes (Oficinária foi o nome dado a essa entidade chi’ixi, como ensina Silvia Cusicanquí, que é tanto uma oficina como um seminário e que faz emergir novas epistemes feministas. Por isso enunciada no feminino. Invenção do 14º Congresso Mundos de Mulheres.)
- 4 Mesas Redondas sobre: Resistências, Poder, Cuidar, Alternativas com a presença de Graça Machel (Moçambique), Emaima Salama Ahmed Kabad (República Árabe Saharaui Democrática), Patricia McFadden (eSwatini) e Houria Boultedja (Argélia/França) entre outras activistas e intelectuais feministas
- 4 Conferências plenárias proferidas por Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (Nigéria), Asanda Benya (África do Sul), Paulina Chiziane (Moçambique) e Raquel Lima (S. Tomé e Príncipe/Portugal)

Porque é que eu comecei pelos números e os nomes das principais protagonistas envolvidas nesta edição do Congresso Mundos de Mulheres? São três as razões principais que concorrem para uma ideia fundamental: Moçambique, país africano, é um lugar do mundo cheio de energia, rebeldia, onde fervilham resistências e alternativas e onde as melhores coisas podem e acontecem, pensadas e levadas a cabo por mulheres africanas nos seus próprios termos.

A primeira razão tem que ver com a dimensão do evento não só pelo número de participantes que estiveram presentes pessoalmente e online, mas também pela ocupação do espaço público do campus universitário e da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da UEM. Ao chegar ao Mundos de Mulheres senti um grande arrepio apesar do calor que se fazia sentir. Era realmente um pluriverso: mundos de mulheres tomaram conta da universidade e do seu calendário. Além do movimento interminável de pessoas, com as suas sacolas e capulanas cores de fogo, indo e voltando das inúmeras actividades simultâneas, avistava-se de imediato a enorme tenda branca onde mesas, conferências, cerimónias, místicas, danças e canções foram percorrendo os dias; viam-se também as fileiras de artesãs, camponesas e os seus produtos da terra, produtoras de óleos, farinhas, ervas medicinais, sabonetes e outras cosméticas feitas a partir do melhor que vem das suas machambas, das florestas e das águas. Um pouco mais adiante as tendas das Mulheres do Grupo de Partilha de Ideias de Sofala (GMPIS) donde chegavam os cheiros gostosos da comida feita ali mesmo, a energia das canções cantadas por centenas de vozes e o poder das falas de todas e cada uma que quis tomar a palavra.

À esquerda da entrada estava a ECA povoada, melhor dizendo, habitada por esse pluriverso de mulheres que montaram os seus pequenos restaurantes, as suas bancas de vender comidas, livros e poções. No átrio amplo estavam os poster, as artes, os espaços de vivências e onde milhares se cruzavam para seguirem até à sala das Oficinárias escolhidas para reflectir, trocar conhecimentos e propor alternativas em colectivos gerados pelo dinâmico programa do Congresso. Em cada sala de Oficinária foi possível transmitir em streaming as discussões e as reflexões; quem não pôde viajar e estar ali fisicamente, não deixou de participar. Uma enorme logística e coordenação de equipamentos de comunicação foi implementada, todos os dias e a cada momento, com uma enorme eficácia.

Sim, podemos! não é um slogan de campanha nem a prática de uma demagogia fácil e populista. Sim, podemos! é a realização deste 14º Congresso Mundos de Mulheres na Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, Moçambique, onde se mostrou a profunda energia com que se pode, de facto, transformar este mundo feio, frio, violento e desigual que nos querem convencer ser o único possível.

A segunda razão é que este 14º Mundos de Mulheres não só desestabilizou e desmontou as expectativas de quem pensou que não seria possível ou então que seria um fracasso, como foi uma forte patada de leoa para lembrar, a quem se costuma esquecer frequentemente, que as mulheres, em toda a sua diversidade, estão e sempre estiveram na história (esta estúpida palavra carregando ela mesma a misoginia na sua ortografia), na sociedade e nas lutas. E estas lutas fazem-se de muitas maneiras e com muitas palavras diferentes daquelas que nunca disseram ou já não querem dizer grande coisa porque foram esterilizadas, como género ou desenvolvimento. Foi nessa polifonia e na invenção de novos idiomas de libertação que se foram inventando durante todo o processo de preparação e realização, que as coisas aconteceram muito para lá do imaginado e até sonhado.

A terceira razão parece a mais simples de todas, mas é a que, neste momento, politicamente, mais reverbera em nós: precisamos de boas notícias, precisamos de bons exemplos, precisamos, todas e todos, que nada fique como dantes e o MM22 em Maputo deu-nos essa energia de luta e reforçou a alegria para continuar nela.

KUBUTSANA! (Verbo usado nas duas principais línguas do sul de Moçambique, Rhonga e Changana, que significa ‘juntar-se por uma causa comum’)

* Fotos da autoria de Teresa Cunha 


Este artigo faz parte da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


Teresa Cunha é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. Co-coordenou os ciclos do Gender Workshop entre 2012 e 2022. Coordena a Escola'Ecologias Feministas de Saberes' É professora-coordenadora da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra e investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memórias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Mulheres, Territórios e Identidades vol 1, 2 e 3; Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.