O debate sobre género e sexualidade perpassa a história da luta da classe trabalhadora e das revoluções sociais, ainda que muitas vezes tenha sido silenciado. Desde a fundação da Primeira Internacional, em 1864 ainda por Marx e Engels, até a Terceira Internacional comunista o capitalismo se tornou mais cada vez mais maduro e os desafios para superá-lo foram se tornando maiores. Correntes reformistas por trás da retórica marxista têm buscado corromper os ideais socialistas desde a segunda internacional. Apesar da emancipação do sexismo e o patriarcado terem um papel importante na revolução social, os debates sobre género também têm sido instrumentalizados contra os revolucionários desde a Segunda Internacional – ainda que conquistas importantes também tenham sido fruto desse período, como o estabelecimento do dia internacional da mulher trabalhadora. Até hoje essa contradição mantem-se como um desafio a ser ultrapassado.
Após o abandono do ideal de internacionalismo e a ascensão do reformismo que marcaram a I Guerra Mundial, coube a Lenine, Rosa Luxemburgo e os bolcheviques fazer o resgate de uma missão histórica: a revolução socialista mundial. Foi com a Revolução Russa, e o surgimento da Terceira Internacional, nascida da primeira revolução proletária vitoriosa, que se deu um passo importante na implementação de políticas de emancipação de género.
Após a Revolução Russa, em 1922 a homossexualidade deixa de ser crime na URSS, o país se torna o primeiro do mundo a implementar o livre aborto, e um dos primeiros a garantir o direito de voto para mulheres. Garantiu ainda o reconhecimento de filhos ilegítimos, direito de divórcio, reconhecimento de apelidos maternos, criminalização da violação no casamento, além de direitos iguais entre homens e mulheres na constituição, etc…
Com a morte de Lenine, acontece um processo de estalinização e retorno ao conservadorismo – o ideal de homem revolucionário masculino volta e vai ter reverberações do maoísmo chinês até o castrismo em Cuba. O ideal viril do homem másculo é retomado – e questões de género passam a ser interpretadas como um desvio pequeno burguês – não era incomum quem considerasse esse debate, inclusive, reacionário. Até a quarta internacional que é marcadamente trotskista, nos círculos de esquerda por muito tempo existiu uma mentalidade de que assuntos de género como a homossexualidade, a lgbtqidade eram tomados como assuntos menores. Era o sentimento de uma geração que dizia que “não é comigo”, assim durante muito tempo o que sobrou foi uma luta política que sempre parecia nova e marginal.
Nas sociedades ocidentais, o enraizamento do reformismo político e a falta de interesse real sobre essas pautas só piorou a situação. Assim as questões de género cada vez mais foram abordadas a partir duma perspetiva de “tolerância”, identidade individual e incluídas dentro do capitalismo e do neoliberalismo. Esse sistema de tolerância vai transformando as nossas contradições em novos mercados de consumo.
Quando o sistema se apropria de mulheres e homens a partir de uma divisão sexual do trabalho, ele diz que as mulheres podem e devem ser inclusas no sistema, desde que se comportem como homens. Mas, se precisarem de creche pública, saúde pública, direitos trabalhistas são imediatamente marginalizadas. Contudo, se elas não quiserem sair da lógica da reprodução social e quiserem assumir um papel social poderão ser integradas ao sistema.
A mesma lógica persegue pessoas lgbt+, estas podem ser integradas ao sistema desde que assumam um comportamento heterossexual e reivindiquem os padrões hegemónicos do conceito de família. Como, por exemplo, na ideia de casamento como legitimação humana dentro dos padrões normativos do conceito de família. Ou seja, é possível aceitar a homossexualidade desde que siga determinado padrão normativo, como se casar e formar uma família que respeite os moldes do modelo hétero, cis, patriarcal.
Afinal, o que está em jogo quando é determinado quem pode ou não se casar, quem pode ou não ter família? E quem não quiser seguir esse padrão não é um sujeito de direitos? Indo mais longe é relevante questionar: só o Estado tem esse poder de nos configurar como seres de direitos? Não será que ainda continuamos acorrentados a uma noção super problemática que é a de sujeito de direito?
Em Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Louis Althusser designa uma série de realidades que se apresentam ao observador na forma de instituições separadas e especializadas. Instituições como religião, escolas, família, aparato legal, sistema político, os média, cultura – funcionam como instrumentos ideológicos que nos formatam, assumindo que existe a unidade que constitui esta pluralidade no corpo e não é imediatamente visível. Os Aparelhos Ideológicos do Estado não devem ser confundidos com o aparato de estado (repressivo). Enquanto o aparato estatal unificado (repressivo) pertence ao domínio público, a maioria dos aparatos ideológicos do estado, apesar de parecerem dispersos, fazem parte do domínio privado.
Ou seja, não importa se as instituições que os realizam são públicas ou privadas - o que importa é o seu funcionamento. Na medida em que o aparato repressivo do Estado faz uso da violência, o aparelho ideológico de Estado opera através da ideologia. Assim, inconscientemente, mas também conscientemente seguimos um padrão normativo, e enquanto a nossa luta consistir em como fazemos para nos integrar nele, e não para destruí-lo continuaremos a ser sucumbidos.
Para Judith Butler a deslegitimação de outras identidades é feita ideologicamente pelo Estado na medida em que informa como os sujeitos devem se apresentar. Assim, a luta pela inclusão revela um movimento reformista, que no melhor dos seus horizontes demanda que uma pequena parcela de direitos para ser concedida – não passa na maioria das vezes de uma concessão do Estado capitalista.
Dito isso, é importante perceber que a exclusão é sempre institucionalizada, na medida em que cria mecanismos para que esse corpo desviante seja excluído. Butler nos convoca a refletir se lutar por uma política onde pessoas do mesmo sexo possam se integrar a uma estrutura formal de família não é em última instância pensar uma política conservadora, reformista e limitada... A pergunta que se põe, então é: o que acontece com todos os corpos não binários, não monogâmicos que constituem famílias de outra forma? Lutar por uma subserviência a um modelo imposto pelo Estado só reforça o punitivismo estatal – que objetifica os corpos desviantes na medida em que exerce diversos tipos de coerção.
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Marcela Uchôa é investigadora integrada ao Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra (IEF); doutora em filosofia política pela Universidade de Coimbra; é colaboradora do jornal português O Público, e no Brasil da Carta Maior.