pt
Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
‘Arrancando-nos da nossa terra, arrancam-nos as raízes e ficamos só no mundo’
Uma breve reflexão sobre a Revisão da Política Nacional de Terras em Moçambique
AN Original - Alice Comenta
2022-05-12
Por Teresa Cunha

A terra é, para uma grande parte das pessoas do planeta, uma rede de relações materiais e espirituais indispensáveis à produção da vida em todas as suas formas. A produção e a manutenção da vida estão ainda intimamente ligadas aos conhecimentos que advêm da sua relação com a terra e que são responsáveis para se poder viver bem. Assim, entende-se que a ocupação e o uso da terra não são, necessariamente, equivalentes à sua propriedade.  Pelo contrário, em muitos lugares do mundo, incluindo em Moçambique, são as pessoas que se veem como pertencendo à terra. 

Foto de Teresa Cunha: Marcha de mulheres em Maputo (2019)

Estas ontologias relacionais encontram-se no âmago da definição de viver bem das pessoas e constituem as razões profundas que as levam a resistir e a contrariar o que os ditames neoliberais propõem para o uso e o aproveitamento da terra que é a sua radical objectificação, mercantilização e exploração. Isto pode ser percebido nas diversas lutas contemporâneas que têm lugar contra a mineração, as barragens, a exploração dos recursos energéticos, a desflorestação, as monoculturas intensivas, a apropriação de terras para ocupação urbana ou turística, entre outras. 

Em Moçambique a maioria das pessoas vive da e com a terra.  As famílias e as comunidades utilizam a terra, como nos ensina José Negrão, para a produção de vários bens de consumo que não são totalmente substituíveis pelos bens do mercado e que não passam, exclusivamente, pela sua conversão em dinheiro. Pelo contrário, os chamados consumos provenientes da terra são também redes de obrigações sociais. Tendo isto em conta, proponho-me uma breve crítica sobre a Revisão da Política Nacional de Terras (PNT) em curso em Moçambique.

Citado pelo documento publicado pelo Observatório do Meio Rural a 22 de Fevereiro de 2022, o Presidente da República de Moçambique argumenta que a necessidade da revisão da PNT se prende com os novos desafios que a actual conjuntura e o desenvolvimento apresentam a Moçambique. Na mesma citação é destacado que o que se preconiza são pequenos ajustamentos e a finalidade é melhorar o uso e o aproveitamento da terra no país.

Sendo certo que, desde os meados dos anos 90 do século passado, altura em que a Lei de Terras (1997) foi aprovada, ocorreram muitas mudanças no mundo em geral e, em Moçambique em particular, na realidade o que parece estar em causa nem são pequenos ajustamentos nem se trata de dar respostas adequadas e justas às aspirações e problemas enfrentados pela maioria da população moçambicana. 

No entendimento de Boaventura Monjane e Natacha Bruna, entre outrxs intelectuais e activistas moçambicanxs, as principais razões para que tal aconteça têm que ver com a economia política agrária neoliberal que tem sido seguida no país, nomeadamente, a partir do início da década de 90 e que têm várias raízes: as alterações fundiárias e de regime económico da terra durante o colonialismo e que permaneceram de várias maneiras;  as exigências feitas a Moçambique pelo Banco Mundial e a Fundo Monetário Internacional em troca da paz no país e que têm conduzido o país sob a retórica da liberdade ‘sagrada’ do mercado (capitalista, diga-se); e, como alerta Natacha Bruna, a captura do Estado moçambicano pelo capital externo e interno, funcionalmente fragilizado, ganhando resiliência aos protestos populares e actuação da sociedade civil, e operando a favor e em resposta a estímulos capitalistas.

Neste sentido, a actual Revisão da Política Nacional de Terras é vista e entendida como o passo necessário para a emenda da Lei de Terras que permitirá às elites nacionais, através do aparelho do Estado, reforçar as suas posições no mercado do investimento agrário. Isso será conseguido:

a) Tornando a terra um bem cada vez mais transacionável,
b) Flexibilizando a entrada de capital estrangeiro de investimento para grandes projectos agrários ou de exploração dos recursos naturais que tenham na terra o seu principal enfoque e
c) Aumentando a capacidade de controlo do governo sobre os processos de titulação, delimitação e determinação das áreas de interesse público ou de desenvolvimento estratégico em ordem à expropriação das terras ocupadas pelas comunidades rurais e camponesas.

No documento, ainda em discussão pública, são referidos, reiteradamente e usando variadas formulações, os verdadeiros objectivos da nova PNT. No parágrafo 159, o seguinte:

- O Governo defende a necessidade de ajustar e flexibilizar os mecanismos legais e administrativos de transmissibilidade de DUATs - Direito de Uso e Aproveitamento da Terra - em especial dos prédios rústicos ou terrenos rurais numa abordagem de economia de mercado.

Ou ainda no parágrafo 160:

O Governo deve aprofundar a livre transmissão de DUATs de prédios rústicos, eliminando a autorização prévia ou regular os termos em que esta deva ser estabelecida por forma a não constituir obstáculo ou constrangimento na dinâmica das transações de bens imobiliários e respectivos direitos fundiários conexos, como forma de impulsionar o desenvolvimento económico.

Este é realmente o tom da proposta ao longo das suas 74 páginas. Porém, no meu entendimento, que é corroborado pelo Fórum Mulher e as organizações de mulheres camponesas com as quais trabalhei o documento nos três primeiros meses deste ano – a quem agradeço profundamente pela oportunidade de aprendizagem - o que fica claro, é que esta abertura ao sector privado, sabendo nós que as capacidades financeiras e de poder das pessoas, particularmente das mulheres camponesas e das comunidades são extraordinariamente desiguais, torna esta relação, não de parceria, mas de potencial subserviência e de exploração. Seguramente, em muitos casos, esta resultará no despojo dos parcos bens que ainda possuem, nomeadamente a sua terra.

As/os camponesas/es  moçambicanas/os, juntamente com outros actores aliados - organizações da sociedade civil, intelectuais, activistas -, têm levado por diante um movimento social de resistência a esta proposta de PNT e estão conscientes de que a sua luta pela terra é muito mais do que o acesso a um bem material donde, também tiram o seu sustento. Estão atentas/os aos enormes desafios que estão a enfrentar na sua vida colectiva e que advêm de vários lados: da liberalização radical da terra ainda que o Estado continue a ser o único proprietário; da expropriação e alterações agrárias que os mega-projectos extractivos estão a provocar; do esvaziamento territorial e as consequentes mudanças demográficas e fundiárias a curto e longo-prazo na sequência da deslocação forçada motivada pela(s) guerra(s); das alterações profundas no manejo e na organização da vida material e imaterial da vida ligada à terra advindas das alterações climáticas; e ainda da expansão das periferias urbanas que transformam terra fértil em lugares de inferno, miséria e indignidade.

Porém, é necessário sublinhar que as resistências estão em marcha com toda a sua potência e a coragem de quem sabe enfrentar um adversário cruel e poderoso, e que não desiste do seu lugar no mundo. Esse será o tema da minha próxima reflexão aqui, no Alice News.


Este artigo faz parte da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação alice-Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


Teresa Cunha é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. Co-coordenou os ciclos do Gender Workshop entre 2012 e 2022. Coordena a Escola'Ecologias Feministas de Saberes' É professora-coordenadora da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra e investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memórias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Mulheres, Territórios e Identidades vol 1, 2 e 3; Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.