O Alice News assinala o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres ao publicar este artigo da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação Alice - epistemologias do Sul (alice-ES), publicada com cadência semanal.
Estávamos todas sentadas à sombra de um grande cajueiro. O dia estava muito quente, muito quente mesmo. Eram umas 11h da manhã. A hora do maior calor. Levámos água e bolachas pois sabíamos que estaríamos dispostas a conversar por várias horas. Éramos todas muito diferentes: camponesas, deslocadas, professoras, trabalhadoras, pesquisadoras, activistas, artesãs, vendedeiras; mais velhas, mais novas, umas mães, outras não, algumas avós; dizemos obrigada de muitas maneira: ndilombolela, kihosukuro, khanimambu, asante; algumas gostam de cobrir a cabeça com capulana, outras usam chapéu, outras deixam o cabelo ao vento cortado curtinho, amarrado em tranças ou arranjado com mechas longas. Importaram pouco as nossas diferenças à sombra do grande cajueiro naquele dia. Pelo menos pareceu-me assim. Todas éramos formigas. Pelo menos, pensava eu, que éramos todas formigas. Mas agora pergunto-me muitas vezes: será que eu sou formiga?
Todas nós queríamos falar de nós e das nossas vidas que afinal se cruzam com as vidas de muitas outras mulheres que nós conhecemos e, até, com a vida de outras que nós nunca vimos mas sentimos que fazem parte dessa nossa irmandade que os sofrimentos comuns parecem engendrar. No início, a vontade de falar era tanta que nos atrapalhámos um pouco umas às outras mas, rapidamente, sobrevieram os silêncios, cada vez mais profundos, dependendo da intensidade da dor. Parecia, como nos contou a Latifa (e claro que este nome foi arranjado agora), que estávamos num buraco de fogo onde tínhamos sido condenadas a morrer. Mas de cada vez que uma de nós falava, era como a saliva do passarinho, que voava perto, e que caía no fogo e o ajudava a apagar. Percebemos que não só a nossa condenação estava condenada a não acontecer como de pingo em pingo de saliva fomos dominando o fogo até que ele se extinguiu.
O meu objectivo para esta crónica Alice Comenta era escrever um texto sobre feminismo. Na melhor das hipóteses, sobre feminismo que se pudesse adjectivar de pós-colonial. Porém da minha cabeça não saem nem as imagens, nem os cheiros, nem o calor, e muito menos as palavras de todas nesse final de manhã, lá em Mahate. E não me saem da cabeça porque tudo aquilo fez e faz muito mais sentido para mim do que muitos dos artigos publicados que leio e que, confesso, até gosto muito. Sou kakata: não deito nada fora, por princípio. Mas confesso que há coisas que me entusiasmam muito mais do que outras.
Foto da autoria de Teresa Cunha: Estrutura das casas em Cabo Delgado antes de serem maticadas, ou seja, antes de serem cobertas com uma mistura de barro com água para as tornar mais impermeáveis. Mas depois de maticadas, como os heróis da guerra, não fica à vista o quanto de pedra sobre pedra e bambu (o trabalho das mulheres e o seu sofrimento) foi preciso para as construir (a nação). Uma boa parte das casas na província está assim, com a estrutura à mostra tal como são as mulheres que zungam de um lado para o outro nas ruas e caminhos para fazerem a vida.
Falámos de coisas muito tristes mas que precisam de ser faladas. Falámos de como matam as mulheres cortando-lhes as mamas, abrindo os seus ventres para lhes retirarem os fetos. Falámos de como as raptam para as obrigar ser espias, a carregar as armas, a cozinhar, a fazer a machamba, a atender um batalhão inteiro por dia.
Não preciso de explicar o que isso significa. Para elas o pudor no uso das palavras é muito importante, é sinal de respeito. Então não quero impor a crueza das palavras com que costumamos designar essas coisas.
Falámos de como as dividem entre ‘Arroz Lulu’ porque são boas para comer, e as escolhem para servir como esposas de comandantes - mais uma vez, o uso das palavras é uma forma de diminuir o trauma e a vergonha. Tenham isso em atenção enquanto lerem estas palavras – e as outras, consideradas feias, são ‘mapira’ e só servem para trabalhar. Há lá coisa mais cruel que estas qualificações?
Falámos das mães que se recusam a amamentar as crianças nascidas dos estupros. Falámos do pavor de ver entrar em casa um filho que se sabe ter matado, ou ter sido obrigado a comer carne e a beber sangue humanos e que nunca mais recuperará a paz nem o sono. Chorámos quando falámos das mães que se entregam aos insurgentes para protegerem as filhas dos estupros. Falámos e chorámos dessas e de muitas outras coisas.
Enganam-se se pensam que a conversa foi um desfiar de lágrimas e gritos. Não. Pelo contrário. Na realidade, estas passagens pelas dores foram sempre entretecidas com análises e reflexões políticas profundas e certeiras, a meu ver. Foram abordados e discutidos assuntos como: a militarização e as suas consequências, especialmente na forma como as crianças e as/os jovens estão a ser ensinadas/os a pensar que a resolução de todos os problemas se consegue com fardas, armas, obediência sem réplica e violência; os mega-projectos extractivistas e a cobiça nacional e internacional que lhes permitem transformar montanhas em pedra triturada para fazer cimento, minas em campos de concentração, campos de cultivo em crateras, bases logísticas em caminhos do mar fechados para os pescadores, as florestas em campos de refugiadas/os, as pessoas em IDPs – Internal Displaced People - e assim por diante. Falámos de como a primeira vítima da guerra é a verdade, de como a guerra não terminou, só parou um pouco, como Mocímboa da Praia, não importa a propaganda, está em silêncio, não se ouve nem uma galinha, nem um cabrito e as tropas ruandesas estão encostadas à praia. Falámos de que é preciso negociar para chegar à paz e de que as Forças de Segurança de Moçambique conhecem quem está do outro lado e até, em alguns momentos, já fizeram acordos com eles para dividir despojos, territórios e evitar mútuas emboscadas. Falámos que sim, a guerra tem rostos e nomes que são conhecidos mas parece que não há vontade de acabar com ela. Falámos de como esta guerra não é religiosa e de como o capitalismo extractivista tem sido a medida de todas as coisas e de como a ganância destrói o país e a vida das pessoas e inventa a ideia de que para se ser alguém se tem que ter muito dinheiro, a qualquer preço. Falámos de como soldados e polícias roubam, matam, torturam, estupram e de como é ter medo de falar, de denunciar porque chega lá com dinheiro na mão e o tribunal fecha as portas e não acontece nada.
A nossa conversa foi carregada de emoções, informação, reflexão e conhecimentos. As vozes, foram autorais e firmes, usando as suas próprias palavras sem nunca se desconectarem dos corpos, das comunidades e dos territórios. Não correu uma única lágrima porque a força de estarmos juntas e sabermos que temos razão foi muito maior do que a ameaça do bufo que passou de mota, vezes sem fim, pelo caminho à beira da sombra onde estamos sentadas para ir relatar às autoridades a nossa subversão: conversar e dizer alto e bom som o que sabemos, pensamos e queremos que se saiba sobre esta guerra maldita.
Há momentos que são como os raios de um relâmpago, breves mas muito intensos, em que as nossas vidas, tão diferentes, se cruzam, se juntam e os corações parecem bater ao mesmo compasso. Mas é preciso dizer quem sou eu naquela sombra, de onde venho e de onde o meu coração bate com o delas. É que eu que vivo num mar de privilégios e posso vir-me embora enquanto elas continuam lá, no calor e no fogo das balas e das porradas.
Passaram-se uns dias e o cenário mudou radicalmente. Estávamos numa sala sentadas em cadeiras com mesas à nossa frente, tínhamos ar condicionado e tudo. Computadores ligados, smartphones sempre na mão prontos a responder às mensagens do whatsapp ou do instragam que estão sempre a entrar, tudo menos urgentes e tudo menos importantes. Recitaram-se todas as ladainhas do género, revisitou-se o repertório aprendido sobre os direitos humanos das mulheres enquanto muitas partilhavam fotografias dos últimos modelos de roupa que é preciso comprar para as festas do fim do ano.
Certeira foi a observação final que ouvi em modo de desalentada impaciência: isto para mim é o feminismo das cigarras. Ela, a que falou assim, tinha estado à sombra do cajueiro.
Eu cá fiquei a perguntar-me, e eu? Não sou eu uma cigarra?
Mas eu quero ser uma formiga ou então a saliva do passarinho que voa sobre o buraco de fogo.
Teresa Cunha é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES', os ciclos do Gender Workshop. Coordena a Escola da Inverno 'Ecologias Feministas de Saberes' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. É professora-adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra e investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memorias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.