Deu no New York Times é uma expressão bastante conhecida no Brasil para dizer que uma notícia deve ser importante ou verdadeira.
Já foi comemorada quando a ditadura empresarial militar censurava a imprensa nacional e o jornal era uma das poucas fontes de informação independente do regime vigente. Já virou título de filme e de livro! Muito utilizada pela oposição ao governo Lula em referência a artigos polêmicos que consagraram o correspondente daquele jornal, a expressão revela duas questões interessantes. A primeira é a importância que os brasileiros dão à percepção do país por estrangeiros e, consequentemente, ao teor das notícias que jornais estrangeiros, sobretudo os americanos, publicam a respeito do país. A segunda questão está diretamente relacionada à influência que os americanos exercem sobre a política, a economia e até mesmo a cultura brasileira. O NYT, no seu papel de propagador da hegemonia cultural americana, ainda trivializa a sociedade e a política brasileira frequentemente abordando o país de uma condição de subserviência e inferioridade em relação aos Estados Unidos. Penso que essa seria uma das causas do nosso famoso complexo vira-lata pois, uma vez publicada no que se considera um dos jornais mais influentes do mundo, a matéria passa a repercutir nacionalmente. Lembrando que o conteúdo do jornal está mais disponível não somente através da versão online (desde 1996) mas também porque agora é possível obter versão dos principais artigos e opinião do jornal em português. A matéria adquire “vida própria” formando e conduzindo a opinião pública brasileira, pressionando ou não governos, abalando nosso brio.
Ainda não existe um instrumento amplamente disponível que proporcione a análise e acompanhamento em tempo real do que os veículos da imprensa internacional publicam sobre o Brasil. Muito menos que questionem suas fontes ou chequem os dados publicados. Mesmo assim, através de uma pesquisa rudimentar usando ferramentas de busca da internet nos sites dos principais veículos da imprensa americana, encontramos que o número total de matérias publicadas pelo New York Times sobre o Brasil tem subido modestamente nos últimos anos. Passou de cerca de 1.200 matérias no período de doze meses, de julho de 2017 à julho 2018, à 1.443 artigos e matérias nos últimos doze meses, de julho de 2020 a julho de 2021. A título de comparação, o The Washington Post publicou cerca de 1.135 matérias no mesmo período de julho de 2020 a julho de 2021. O número de artigos no NYT sobre o Brasil não parece baixo se comparado aos 525 artigos sobre a Argentina que o NYT publicou no mesmo período ou, ainda, aos 755 artigos em que Cuba foi citada. Dos artigos publicados pelo jornal a maioria fazia parte do caderno mundo (World), 285 artigos. No caderno de Esportes foram publicados 106 artigos, 98 saíram na seção Opinião, 81 em Negócios (Business), 69 no caderno de Saúde, 29 na seção de Clima (Climate), 75 foram tratados na seção de Artes e 32 foram publicados na revista do jornal. Os demais artigos foram publicados na seção nacional (U.S.) e em informações gerais (Briefing).
Certamente, por ser o ano em curso um ano de pandemia e olimpíadas, é possível que o número e natureza das matérias estejam mais condicionados a essas temáticas. Apesar disso, somos, aguçados pela curiosidade, levados a indagar como são escolhidas as matérias que são publicadas, quando são publicadas, o destaque que recebem e por quê? Nesse sentido, com base também em observações empíricas, vale reconhecer que a maioria dos correspondentes no Brasil são homens brancos que geralmente não passam mais de quatro anos no país como forma de garantir uma redação fiel à perspectiva estrangeira. Obviamente, há exceções importantes de correspondentes que acabam optando por permanecer no Brasil por tempo indefinido, alguns por mais de 25 anos! Devido a alta rotatividade entre um grupo não muito diverso e as pressões de tempo e originalidade, muitos desses correspondentes tendem a se basear em fontes “seguras”, isto é, autoridades, analistas renomados e, muitas vezes, outros estrangeiros ou pessoas que falem inglês com desenvoltura. Essas pessoas passam a ser o contato principal desse correspondente no país, respondendo sobre uma variedade de assuntos que, às vezes, extrapolam o campo de sua especialidade. Esses especialistas sempre dispostos a dar entrevista, fluentes em inglês, treinados em frases de efeito que sintetizam um pensamento ou opinião se tornam o barômetro dos jornais. Isso é facilmente verificável. Basta que se cheque a fonte citada por esses jornais. Não é mera coincidência que pessoas como Carlos Cawal, do Citigroup, ou Bolívar Lamounier, representante da Stanley Morgan, tenham sido fontes quase obrigatórias das matérias sobre a economia no Brasil antes e durante o primeiro governo do PT. Sem querer desmerecer a contribuição que esses especialistas do setor financeiro prestam ao auxiliar a mídia, gostaria de chamar a atenção para o fato de que a falta de interação com outros analistas e de outros setores funciona como um filtro das informações que chegam aos correspondentes e, por meio deles, aos seus leitores.
A edição das matérias e a escolha dos temas abordados, muitas vezes, reflete a complexidade dos acontecimentos mundiais. Apesar do aumento recente do número de artigos sobre o Brasil, de maneira geral, observa-se que efetivamente, após a guerra do Iraque, caiu significativamente a cobertura sobre os países latinoamericanos na imprensa americana. Os recursos humanos e financeiros dos órgãos de imprensa são direcionados para uma região e aos assuntos que teoricamente interessam aos seus leitores. Ao que parece, a América Latina é um dos lugares menos importantes para os americanos hoje em dia. A presença de correspondentes estrangeiros no Brasil, por si só, não significa maior cobertura pois, muitas vezes, eles são responsáveis por regiões inteiras e são, de fato, correspondentes para toda a América do Sul. Como resultado, matérias sobre o Paraguai competem com as matérias sobre o Brasil ou o Chile.
Além disso, em tempos de crise mundial como a vivida pela pandemia do Covid-19, existe uma carência por matérias mais amenas, ou como dizemos no Brasil, mais light. Assim, análises mais profundas sobre problemáticas sociais complexas dão lugar ao exótico, ao que permite um contraste cultural com a cultura norte-americana. Se por um lado esse tipo de matéria pode ser fundamental para sedimentar uma expressão ou mesmo a identidade cultural de uma nação, por outro lado, é mais suscetível a vieses e estereótipos. Também é fato conhecido que a decisão sobre a publicação de uma matéria não é do jornalista mas dos editores do jornal. No processo jornalístico, o editor também é o curador que atende aos interesses da empresa seja no âmbito comercial, econômico, político ou social. Ou seja, não se pode perder o foco de que as matérias publicadas são, sobretudo, para atender aos seletos leitores americanos e responder às necessidades comerciais da empresa que, desde o início do século, sofre queda de circulação e forte concorrência da mídia virtual (e social). Mas, felizmente, esse público americano também tem uma evolução histórica. Embora, ainda, dois terços de sua audiência (cerca de 71%) seja composta por pessoas brancas, não existe mais uma discrepância significativa por gênero entre seus leitores (51% homens e 49% mulheres). 63% deles têm até 50 anos e 91% se identificam como democratas. Se seguirem as tendências políticas mais progressistas entre a população americana em geral, e, particularmente, entre os jovens, quem sabe o Brasil que interessará aos seus leitores será um Brasil mais justo e democrático. Um Brasil melhor para os brasileiros também será um Brasil para americano ler.
Nadejda Marques investiga na Universidade de Coimbra - CES os Efeitos das Políticas de Saúde Pública para combater o COVID-19 em Migrantes e Refugiados da União Europeia. Este projeto é parceiro da Rede Covid-19 Humanidades da UFRGS que tem como objetivo produzir conhecimentos que permitam compreender os impactos da pandemia no Brasil. Nadejda Marques é PhD em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha) e trabalha com direitos humanos há mais de duas décadas. Ela é autora de Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley (2018) sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício; e co-autora do livro The Cost of Inaction: Case Studies de Ruanda e Angola (2012) que apresenta e implementa a metodologia de Amartya Sen para contabilizar as consequências e estimar os custos de uma falha na seleção de ações apropriadas para responder às necessidades das crianças e suas famílias. Marques escreveu sobre uma variedade de tópicos, incluindo reassentamento de refugiados, deslocados internos e ex-combatentes em Angola, saúde pública na África Subsaariana, o tráfico de pessoas na Europa e serviços de saúde escolar nos Estados Unidos. Marques trabalhou como pesquisadora em Angola para a Human Rights Watch e como consultora para os principais centros de direitos humanos em Angola e no Brasil. Ela trabalhou como correspondente especial para o Washington Post na América Latina e lecionou e/ou trabalhou em Harvard, Bentley College, Universidade de Massachusetts, Stanford e na Universidade do Colorado em Boulder. Marques é fluente em inglês, português e espanhol.