A deterioração da situação em Cabo Delgado tem gerado um fluxo contínuo de notícias, entrevistas e relatórios, mas praticamente não há mulheres a escrever sobre a guerra que tem lugar na província moçambicana.
Os artigos publicados em jornais de grande circulação, nacionais e estrangeiros, assinados, invariavelmente, por homens. Os artigos de carácter científico que procuram analisar as causas da guerra e a situação actual, de autoria de moçambicanxs, são praticamente todos assinados por homens. Existem muito poucas excepções, como são os trabalhos de Liazzat Bonate. Analisaram-se também as publicações de centros de pesquisa como o OMR – Observatório do Meio Rural, o IESE – Instituto de Estudos Sociais e Económicos, a WLSA – Women and Law in Southern Africa, os relatórios da associação Sekelekani e do Centro Terra Viva e não se encontrou material assinado por mulheres acerca da guerra em Cabo Delgado. Apenas tive acesso a um relatório de pesquisa para a USAID de autoria de duas mulheres, Júlia Wachave e Ângela Collet mas que, até este momento, não foi difundido publicamente.
Esta falta das vozes e conhecimentos das mulheres precisa de uma investigação cuidadosa e compreensiva para apurar as causas próximas e profundas deste pesado silêncio. Como feminista importa-me entender esta realidade pois é certo elas falam, elas querem ser ouvidas, elas pensam e analisam, elas avançam causas, razões e soluções. O objectivo dos dados que a seguir se apresentam é mostrar, de uma forma muito breve, como está a ser produzida a sua ausência nos meios de comunicação social apesar de se saber que existem jornalistas mulheres a fazer o seu trabalho no território.
Neste sentido, começo por apresentar um estudo exploratório feito com base numa análise sistemática à produção jornalística nacional e internacional publicada entre 27 de Fevereiro e 8 de Novembro de 2020 em vinte e quatro Newsletter da autoria de Josehp Hanlon que faz um clipping de notícias sobre Moçambique.
Através do uso de diversas categorias percorreram-se as notícias de forma sistemática. Assumiu-se, pela análise preliminar das notícias publicadas, que as categorias ‘Cabo Delgado’ ‘War/Civil war’, ‘Insurgents’ e ‘Attacks’ se referem sempre aos espaços onde actuam os homens, de onde falam e são falados. Assim, para determinar melhor onde e quando apareciam notícias que incluíam mulheres (vítimas, protagonistas de alguma coisa, ou meramente referidas) usaram-se as categorias de ‘Women/Woman’, ‘Girl(s)’ e ‘Gender’. O quadro seguinte mostra as categorias usadas para análise e o número de ocorrências no período indicado:
Categorias de análise | Nº de ocorrências encontradas nas Newsletter analisadas
Women/Woman | 21
Girl(s) | 5
Gender | 0
Cabo Delgado | 224
War/civil war | 235
Insurgents | 263
Attacks | 135
Deste quadro percebem-se pelo menos duas coisas.
A violência como resposta à violência
A primeira é que as notícias sobre Moçambique ao longo do ano de 2020 deram uma grande importância à guerra em Cabo Delgado. Isto fica demonstrado pelo número de vezes que Cabo Delgado é referido, a guerra e às vezes guerra civil, insurgentes e ataques perfazendo um total de 857 ocorrências.
Nestas categorias são falados os homens já que são eles que são considerados os protagonistas tanto da insurgência quanto dos combates contra ela. Também se fala dos interesses económicos que estão por detrás dessa violência e que são também um terreno essencialmente masculino. Referem-se as autoridades militares e policiais e ainda as autoridades políticas e administrativas quase todas encarnadas em figuras masculinas.
Por outro lado, mostra que o senso comum dominante sobre a província de Cabo Delgado, hoje em dia, privilegia as notícias sobre a guerra e a sua crueldade e quase não dá importância a outros aspectos da vida das populações ou das iniciativas que estas têm levado a cabo para resistir e enfrentar a violência. Pode-se dizer que há uma militarização da sociedade e da comunicação reforçando os impactos negativos que esta tem nas relações sociais e institucionais.
Elas não falam: são faladas
A segunda, como fica fácil de constatar a presença de vozes das mulheres e raparigas ou sequer de referência a elas é muitíssimo menor, 26 ocorrências. Isto permite confirmar a tese da ausência e do silenciamento das mulheres e raparigas para descrever esta realidade e as suas experiências nos processos de pensar e dar razões a esta guerra assim como nas potenciais negociações em direcção à paz.
Dá-se sobretudo importância à sua vitimização sem se procurarem analisar nem as razões nem os impactos na vida das mulheres presas, abusadas, estupradas, raptadas e combatentes.
Isto fica melhor compreendido quando se leem os conteúdos onde as mulheres são referidas. Em seguida apresentamos um quadro de análise de conteúdo utilizando-se as transcrições dos excertos das peças publicadas nas Newsletter analisadas onde ocorrem referências às raparigas e mulheres:
VITIMIZAÇÃO DAS MULHERES E RAPARIGAS | AGÊNCIA DAS MULHERES E RAPARIGAS
Three women were abduted and another person killed | Women are active insurgents
Teachers can impregnate school girls | GMPIS - Grupo de Mulheres de Partilha de Sofala which last year created a solidarity campaign for the victims of cyclone IDAI has started a solidarity campaign to support women and girls in Cabo Delgado
And more than 20 foster care centres for orphaned and vulnerable children in Nampula have been closed, after inspection found girls had been sexually abused and raped by some managers, Egídio Sousa, from the Provincial Directorate for Gender, Children and Social Action, said. In addition there was an absence of minimum conditions of accommodation and food. | A particularity of Islam in this region is that there are traditional chiefs who are women and Muslims. Women are very important in this society and very influential, but they tend to be ignored by researchers and policy makers." And she argues that having women fighters in the new insurgency The women's detachment [Destacamento Feminino]… downplay or not report that Muslim women made a very significant part of the first contingent of the female detachment” Muslim women were armed fighters.
"A lot of women have been arrested"
On 5 June, insurgents kidnapped girls in the Nabubussi neighborhood of Mocimboa da Praia. Some of the insurgents moved west and kidnapped at least 10 girls from parts of Mocimboa da Praia. But the law also guarantees the rights of women (imposing some changes on customary inheritance and allocation systems).
Eighteen of the women have contracted HIV/AIDS
Young men and sex by young women
The instructors and women have been suspended but the women will be allowed to resume their course next year (Este excerto não se refere a Cabo Delgado mas sim ao escândalo da Escola de Instrução de Matalane)
The most recent video shows soldiers chasing a naked women down a paved road.
Women were raped by FDS forces and in late 2019 eight youths were executed by the FDS.
Outra forma de silenciamento a que as mulheres estão sujeitas é tornar as suas vozes e experiências da guerra funcionais apenas para o conhecimento dos interstícios da guerra onde são os homens os únicos protagonistas. Isso fica muito claro no relatório da OMR nº 109 de Abril de 2021 com o título Caracterização e organização social dos machababos a partir dos discursos de mulheres raptadas de autoria de mais um homem: João Feijó. Além da assunção de que existem muitas mulheres raptadas e que os sofrimentos delas são inomináveis, toda a lógica e a produção do relatório concentra-se, uma vez mais na guerra e nos homens que a fazem.
Um longo caminho para a paz está ainda por percorrer e nele, elas precisam de ser assumidas na plenitude dos seus direitos e das suas vozes que falam e que são indispensáveis.