Cabo Delgado e a guerra na vida das mulheres – parte I
Foto de Teresa Cunha.
As palavras de Melina Nicuta, camponesa de Manrase do distrito de Chiúre, já somos gente de pouca esperança, só vivemos são expressão clara das feridas abertas nas vidas das mulheres que vivem na província de Cabo Delgado no norte de Moçambique.
Desde Outubro de 2017 que a província de Cabo Delgado está a ser confrontada com um crescendo de violência armada. No início parecia que os ataques perpetrados pelos diversos grupos de jovens, que começaram a ser apelidados pelas populações de Al Shabaab, tinham como alvo instituições das autoridades moçambicanas. Com o desenrolar dos acontecimentos e do tempo, as pessoas, as suas casas, os seus haveres, machambas e, todo o tipo de infraestruturas que possibilitam a vida nas aldeias e vilas, passaram a ser atacadas com uma extraordinária violência.
A vida nos distritos do norte da província está a tornar-se impossível o que tem tido como efeito a deslocação forçada de centenas de milhar de pessoas que procuram chegar a algumas sedes de distrito, onde parece ainda haver alguma segurança. Vão à procura de refúgio e apoio alimentar, como Ancuabe, Metuge, Montepuez e Mueda, ou à capital da província, Pemba.
Segundo um estudo publicado pelo Observatório do Mundo Rural (OMR) em 4 de Novembro de 2020 haveria à data pelo menos 302.210 pessoas deslocadas só na província sabendo-se que também há pessoas a fugir e a tentar chegar às províncias do Niassa, Nampula e Zambézia, perfazendo, pelo menos, 450.000 de pessoas que estão a tentar escapar deixando para trás um rasto de morte e destruição.
Num artigo publicado em 21 de Novembro de 2020 pelo jornal Sinal Aberto, Yussuf Adam afirma que há pelo menos 500.000 pessoas deslocadas. Em Outubro a Lusa publicou que se estima que entre mil e duas mil pessoas já morreram em Cabo Delgado desde 2017 sendo estas vítimas directas da guerra (mortas em combate ou assassinadas), igual informação foi dada pelo jornal Canal de Moçambique em 28 de Outubro. Porém, não há qualquer estudo ou estimativas publicadas sobre as mortes indirectas (por doença, fome, maus-tratos de toda a ordem derivados da guerra) que já deverão ser na ordem das dezenas de milhar.
A situação agudizou-se com a chegada diária à praia de Paquitequete em Pemba, durante Outubro e Novembro deste ano, de dezenas de embarcações precárias sobrelotadas com pessoas de todas as idades fugindo dos ataques e de uma morte certa. Há relatos de pelo menos 4 mulheres terem dado à luz nas travessias por mar em busca de segurança, embarcações que se afundaram resultando em muitas mortes por afogamento e de extrema exaustão, desidratação, desnutrição, fome e desespero. Apesar dos esforços do trabalho dxs voluntárixs de organizações das igrejas e da sociedade civil e das instituições nacionais e estrangeiras, muitas centenas permaneceram na praia durante semanas à espera que pudessem ser conduzidas a centros de acolhimento de refugiadas/os na província ou alocadas em outros locais de reassentamento noutras províncias sendo o Niassa, Zambézia e Nampula as mais mencionadas para este efeito
A crise humanitária, o desânimo, a frustração de tudo haver perdido e da ausência de soluções concretas para acabar com esta guerra é de uma dimensão tal que várias entidades internacionais como as Nações Unidas, a União Europeia e o Vaticano têm vindo a pronunciar-se sobre o assunto exigindo a atenção internacional e instando o governo de Moçambique a tomar medidas efectivas para proteger as suas populações e intervir de forma a que a guerra possa ser debelada o mais rapidamente possível. Também vários governos da região da SADC, nomeadamente do Zimbabwé e da África do Sul manifestaram a sua preocupação e ofereceram apoio para o enfrentamento da crise humanitária e da guerra.
Ouvidas as pessoas e analisando notícias, relatórios e artigos publicados pode-se dizer que estamos perante uma situação cujos principais impactos na vida das populações são os seguintes:
a) a tensão financeira, emocional, de espaço e alimentar a que estão sujeitas as famílias que estão a receber nas suas casas as pessoas deslocadas o que provoca o aumento das desigualdades;
b) o abandono forçado das terras, habitações, gado e outros bens assim como de pontos de pesca está a incentivar ocupações indevidas e a provocar uma reorganização fundiária não desejada. Isso tem sido fonte de conflitualidade acrescida entre famílias e populações e de processos de apropriação ilegal e de aparecimento de novos negócios marcados pela ganância (faída) e para fazer dinheiro com a guerra;
c) a pressão exercida sobre os recursos naturais como a água, florestas e pesqueiros sujeitos a uma depredação e poluição sem controlo;
d) a interrupção dos modos de vida e dos rituais de passagem considerados fundamentais para a vida pessoal e colectiva; a falta de acesso a ervas, raízes e outros medicamentos que as pessoas utilizam no seu dia-a-dia;
e) a presença de muitos estrangeiros (vientes) que trabalham nos mega-projectos de extracção de minério, madeira, gás e petróleo e que estão, aparentemente, a ser poupados a esta violência o que provoca desconfinaças sobre quem os protege;
f) a distorção dos valores morais considerados localmente adequados e desejáveis e o consequente aumento de comportamentos individuais e colectivos qualificados de desviantes e perigosos como: roubos, ausência de gentileza, falta de respeito, uso de palavrões, prostituição, abandono de crianças, entre outros;
g) o aumento das desconfianças e ressentimentos a vários níveis: da população no que diz respeito às autoridades moçambicanas que parecem não estar a ser capazes de acabar com o conflito e a violência, a corrupção e as denúncias sobre o seu comportamento que não respeita os Direitos Humanos; entre as famílias por receio de maridos e outros parentes masculinos de algumas pertenceram a grupos de insurgentes; entre os grupos etnolinguísticos prevalentes no território com acusações mútuas de conivência com o poder central, Macondes, relações especiais com a violência, Mwanis ou ainda os fazedores de negócios e dinheiro, Macuas; entre as populações e as grandes empresas exploradoras dos recursos naturais que parecem continuar a operar sem que nada as atinja;
h) a pressão emocional que representa a perda de familiares por assassinato, por rapto ou maus tratos pelos diversos actores no terreno sejam estes as milícias de insurgentes, as forças de defesa e segurança, a polícia ou bandidos;
i) um blackout da informação credível e sustentada em fontes fidedignas em meios de comunicação social, as ameaças, a prisão e o desaparecimento de jornalistas e de pessoas que prestem testemunho ou façam circular fotografias, vídeos ou outros elementos esclarecedores da real situação vivida;
j) a militarização da sociedade e a disseminação de uma cultura de violência e repressão como forma privilegiada de resolver os conflitos.
Todos estes impactos, e outros que porventura ainda possam ser enumerados, são sentidos de forma diferenciada entre as mulheres e os homens, entre as meninas e os rapazes e também entre as pessoas idosas dos diferentes sexos. Para se chegar a um entendimento mais próximo da realidade, é necessário fazer um esforço para perceber algumas das especificidades das experiências e das vozes das mulheres, de todas as idades, que vivem ou viviam em Cabo Delgado.