Em janeiro de 2005 foi inaugurada a Escola Nacional Florestan Fernandes. Há 15 anos a escola que foi construída e é mantida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra com apoio de outros movimentos, ganhou forma. De lá pra cá a escola se tornou referência internacional por unir a prática com a teoria política. Ao longo do ano, militantes, dirigentes e quadros de organizações populares que lutam pela construção de mudanças sociais, estudam teoria política nacional e internacional com foco em diversos temas como: questão agrária, marxismo, feminismo, entre outros...
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Mas, quem é a pessoa por trás do nome que inspira essa iniciativa e tantas outras práticas políticas inspiradoras? Filho único de uma imigrante portuguesa que chegou ao Brasil para trabalhar aos 13 anos de idade, a mãe Maria Fernandes garantiu a subsistência dela e do filho por muitos anos como empregada doméstica. De engraxate, ajudante de barbeiro, à professor e doutor em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Florestan Fernandes nunca esqueceu suas origens. No último dia 22 de julho de 2020, completaria cem anos.
A partir de uma análise apurada da própria constituição histórica da sociedade brasileira constata que o modo de produção capitalista no Brasil não precisou de uma revolução para se estabelecer. As dinâmicas imperialistas e a escravização se entrelaçaram para fazer surgir o que ele chama, à luz da teoria marxista, de "capitalismo dependente". Característica que pode ser facilmente constatada na relação de dependência que a burguesia brasileira tem com o capitalismo central. A desindustrialização do Brasil e a condição de exportador de commodities, são reflexos desse processo.
Essa análise fez com que Florestan constatasse que o desenvolvimento nacional de forma autônoma não era possível, pois sempre estaria atrelado às dinâmicas do capitalismo central. E as soluções políticas dadas pela ‘burguesia’ brasileira nunca promoveriam as mudanças efetivamente necessárias para o desenvolvimento social do país, como as reformas agrária e educacional. Se o capitalismo central subjuga a burguesia brasileira, esta também violenta a classe trabalhadora com sua mentalidade escravocrata. A construção de um país pautada em reformas agrária e educacional, era a resposta a essa dinâmica opressora, e para o sociólogo essa transformação só podia ser levada a cabo pela classe trabalhadora, só ela podia levar adiante a prática revolucionária transformadora.
Empenhado em desenvolver uma sociologia brasileira, como professor desenvolveu uma série de trabalhos, orientou dezenas de teses sobre o subdesenvolvimento capitalista e seus reflexos no processo de industrialização e impactos sociais no país. Após o golpe militar de 1964 produziu diagnósticos reveladores sobre educação, identificando obstáculos históricos e sociais e o papel das Universidades públicas no Brasil diante da tentativa de silenciamento e repressão que estava por trás da reforma universitária proposta pelos militares.
Com o ativismo político e as denúncias ao regime veio a aposentadoria compulsória em 1969, que em momento algum o afastou da sua ação política militante. Por não ver no horizonte político nacional nenhuma alternativa que levasse a cabo uma proposta socialista radical filia-se em 1986 ao partido dos trabalhadores (PT), ainda que reconhecesse que o partido estava longe de representar um ‘socialismo de massas’. Em 1987 se elege deputado federal, na Assembleia Nacional Constituinte, tendo destaque em debates sobre educação pública. Sua crítica à falta de um programa que reivindicasse o partido como núcleo político da classe trabalhadora, devido às ambiguidades provocadas pelas correntes mais intelectualistas e as tendências cristã e social-democrata, não o impediram de ser um representante da contracorrente com ideais revolucionários que embasavam seus projetos sociais e políticos.
Com mais de cinquenta obras publicadas, o sociólogo também foi um dos responsáveis pela elaboração do capítulo da Constituição que defende a autonomia das universidades, bem como a defesa da gratuidade e qualidade do ensino público. Sociólogo marxista e referência de movimentos sociais e educacionais, em 4 de julho de 1990 retorna ao país que guarda as origens de sua família materna, Portugal, para ser laureado com o título de Doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra, na Sala dos Capelos, apadrinhado pelo professor Doutor Boaventura de Sousa Santos.
Falecido em 10 de agosto de 1995, resgatar o legado material e imaterial deixado por Florestan Fernandes, é resgatar a política enquanto força transformadora do mundo.
Marcela Uchoa é membro do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra (IEF); está a concluir o Doutoramento em Filosofia Política na Universidade de Coimbra; é mestre em Filosofia; licenciada em Filosofia; professora de ética e Filosofia do Direito - Brasil.