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Moçambique, as mulheres e a pandemia - Parte I
AN Original - Alice Comenta
2020-05-26
Por Teresa Cunha

Estamos a viver uma pandemia a nível global por infecção do novo Corona Vírus, a COVID 19. Esta pandemia apresenta três características muito significativas: (1) uma taxa de transmissão muito elevada fazendo com que o número de pessoas infectadas aumente exponencialmente a cada dia que passa; (2) é transversal a todos os países e regiões do globo; (3) tem uma taxa de mortalidade muito elevada dadas as complicações de saúde que gera, nomeadamente, do foro pulmonar e respiratório e a falência multi-orgânica subsequente.

Esta situação tem gerado alterações profundas no quotidiano das pessoas e tem levado os governos e os estados nacionais a várias medidas de emergência pública. A declaração do estado de emergência implica, em geral, a implementação das seguintes medidas: (1) confinamento em casa; (2) restrições severas à mobilidade; (3) restrições severas à aglomeração de pessoas, o chamado afastamento social, com proibição de espetáculos, cultos, manifestações, marchas, festas familiares, ou outros eventos que envolvam grandes conjuntos de sujeitas/os; (4) encerramento das actividades comerciais consideradas não essenciais das quais se excluem provisão de alimentos, água potável, electricidade, gás, medicamentos e outros serviços de saúde; (5) encerramento de escolas e universidades e transferência das suas actividades para meios digitais ou à distância, conforme as possibilidades técnicas existentes; (6) encerramento de fronteiras e cancelamento de vistos de entrada; (7) restrições severas à mobilidade aérea e ao uso dos espaços aéreos nacionais; (8) em casos mais graves têm-se adoptado medidas de cerco sanitário de territórios/populações; (9) vigilância policial e até militar do cumprimento das medidas e punição das/os transgressoras/es; (10) o uso de vigilância digital e por GPS (Global Positioning System) das/os cidadãs/ãos , dos seus movimentos e contactos. Do mesmo modo, ao nível da economia, trabalhadoras/es, empresárias/os e empresas, estão a ser afectadas pela situação da saúde pública mundial e pelas medidas de contenção e prevenção do alastramento da COVID 19. O sector económico tem sido pressionado a adoptar alterações às suas actividades.

As consequências mais visíveis têm sido o aumento do desemprego, a falta de produtos básicos de higiene de protecção contra o vírus, o aumento incontrolado dos preços, a precarização das condições de trabalho e de segurança humana e alimentar, aumento da xenofobia; aumento da violência contra as mulheres de todas as idades; a supressão ou restrição de direitos civis e políticos como o direito à greve, adiamento de eleições e outros e, em casos de economias fortemente caracterizadas por actividades de carácter informal, uma drástica perda de meios para obtenção de renda e, portanto de sobrevivência.

Pretendo, numa série de reflexões, que serão publicadas sucessivamente, fazer uma análise das condições e dos impactos desta pandemia na vida das mulheres e raparigas em Moçambique. Tenho ainda por objectivo, e com base no trabalho realizado com várias associações de mulheres em Moçambique e com a sua plataforma nacional, Fórum Mulher, apresentar as principais recomendações para o enfrentamento da pandemia e para a recuperação pós-crise. Começo por apontar algumas das especificidades da realidade moçambicana no seio da qual ocorre a emergência provocada pela COVID 19.

Em Moçambique, por razões de calamidade pública, foi declarado o estado de emergência por 30 dias no dia 1 de Abril de 2020 e renovado por mais 30 dias, ou seja, até ao final do mês de Maio. Apesar dos números conhecidos de pessoas infectadas no país não serem, até agora, particularmente alarmantes, os riscos de infecção para as mulheres pelo Corona Vírus além de elevado terá impactos trágicos para elas e para as famílias e comunidades que dependem, em grande medida do trabalho e do rendimento delas.
Moçambique apresenta vários factores específicos que é preciso ter em consideração, não apenas para avaliar melhor as condições de propagação da infecção e da doença, mas também para desenhar medidas de contenção e acautelamento da saúde pública, especialmente das mulheres e das raparigas que não ficam protegidas de forma inequívoca pelo Decreto Presidencial sobre o Estado de Emergência:

  • Em Moçambique a maioria das pessoas são mulheres jovens; a prevalência de casamentos prematuros das meninas é uma das mais elevadas do mundo; a infecção pelo HIV é superior a 13% e atinge 3 vezes mais as mulheres do que homens; a violência praticada contra elas atinge níveis muito elevados (uma em cada três revela ter sofrido violência de algum tipo); apenas 1,4% das mulheres tem escolaridade de nível secundário e, em meio rural, 71,6% são analfabetas; que cabe às mulheres a provisão de alimentos e o cuidado com ascendentes e descendentes vulneráveis;
  • Moçambique tem cerca de 28 milhões de habitantes e conta apenas com 2.473 médicas/os dos quais mais de 400 são estrangeiras/os. Existe menos de uma Unidade Sanitária por 10.000 habitantes, revela um estudo do Ministério da Saúde. O inventário, realizado pelo Instituto Nacional de Saúde, revela também que 19% das 1.643 unidades sanitárias não tem energia eléctrica, 12% não dispõe de fonte de água dentro ou no recinto da unidade e que 21% não tem casa de banho para pacientes;
  • As dezenas de milhar de emigrantes na República da África do Sul, onde a COVID 19 já se espalhou de forma dramática, que estão a regressar a Moçambique, por falta de trabalho e o desemprego devidos à pandemia, sem serem testados é um risco especialmente grave sobretudo para as mulheres e as crianças das famílias que as/os recebem neste momento;
  • As populações atingidas mais duramente pelos desastres ambientais, Idai e Kenneth, no ano passado, ainda não têm a sua situação regularizada em termos de domicílio, abastecimento de água e outros bens essenciais. Também as culturas alimentares são ainda muito incipientes e, em muitos casos, largamente insuficientes para garantir uma nutrição básica;
  • Os conflitos militares no centro e norte do país estão a provocar a destruição de infraestruturas essenciais (pontes, estradas, postos de saúde, escolas, postos administrativos); a fuga de dezenas de milhar de pessoas; o corte no abastecimento de bens essenciais à vida; o aumento drástico da concentração populacional nas sedes provinciais ou de distrito; o medo e o pânico generalizados; e a normalização da violência como método de resolução de conflitos. Esta situação faz com que estas populações fiquem especialmente vulneráveis à contracção da COVID 19, em particular as mulheres e as raparigas porque são as mais discriminadas no acesso à alimentação, aos cuidados de saúde e à informação de qualidade;
  • Muitas mensagens sobre modos de prevenção não chegam às populações. A pluralidade linguística do país, a sua extensão territorial, a ausência de infraestruturas de comunicação de massas (rádio, televisão, telefone móvel, jornais) e a fraca capilaridade dos serviços do estado em muitas zonas do país, nomeadamente nos meios rurais e remotos onde se concentra uma boa parte da população, introduz mais um factor de risco em situação de pandemia e alarme da saúde pública;
  • Moçambique tem uma economia muito dependente da ajuda externa e porosa. Não existe praticamente tecido industrial sendo o país totalmente dependente do exterior no que respeita a produtos manufacturados. Isso significa uma enorme fragilidade perante alterações drásticas da economia global e regional;

No próximo texto tenho como objectivo apontar os principais impactos desta situação na vida das mulheres e raparigas em Moçambique prosseguindo com as recomendações e as alternativas que elas mesmas estão a construir. Terminarei com uma análise feminista da economia política que produz estas pandemias e acorrenta os países e os continentes a uma desigualdade profunda de viés colonial e genocida.