Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.
Dakar – graffiti da artista senegalesa Zeinixx
A pandemia do COVID-19 alcançou já os quatro cantos do globo. As reportagens diárias transportam consigo números e figuras de vários tipos: os testes realizados, os ventiladores em falta, o número de vítimas fatais em ascensão em muitos lugares do mundo. Estes números influenciam a nossa capacidade de ser solidários, de cuidar e apoiar nestes tempos de exceção.
Os dados estatísticos da OMS indicavam que, a 10 de maio, existiam no continente mais de 44.000 casos confirmados de coronavírus, e mais de 2.200 vítimas mortais. De entre os países com maiores índices de contágio estão a África do Sul, a Argélia, Marrocos, Nigéria, Gana, Camarões, Guiné Conacri e Djibuti. De referir igualmente que nos países estão em prática uma série de medidas visando a prevenção e contenção da propagação da pandemia, disponíveis a qualquer pessoa interessada em acompanhar estes processos.
A esta multiplicidade de situações tende a opor-se uma imagem uniforme do continente. Na etapa atual da globalização, a universalização da condição humana passa pela realização de exercícios analíticos, fundamentais para a elaboração de políticas globais de saúde; contudo, estes exercícios tendem a uniformizar os vetores de análise, produzindo propostas sanitárias ‘globais’. Neste contexto, os dados estatísticos ajudam a legitimar a dramaticidade da pandemia no mapa global e a reafirmar a violência colonial, ao insistir numa projeção analítica de dados ‘sobre África’. E é patente que os números transformam o que é contado em realidade, seja nas políticas nacionais e internacionais, seja nos imaginários individuais. No referente a dados estatísticos, África continua, sobretudo nos média ocidentais, a ser vista ‘como um país’: contam-se o número de ventiladores disponíveis, o número de vítimas, e avalia-se o impacto económico da pandemia ‘em África’.
Porquê e quais as consequências? Analiso aqui três situações.
A produção dos números
Se os números são a condição para reconhecer o problema da COVID-19, há que reconhecer a (in)capacidade real de muitos países do Sul em testar, mesmo que por amostragem, a sua população, a exemplo do que aconteceu na Coreia do Sul ou em Taiwan. Acrescente-se a dificuldade em produzir estatísticas fiáveis sobre a saúde da população, já que a dispersão social é grande (no caso de Moçambique, com cerca de 30 milhões de habitantes, mais de metade dos cidadãos vive em ambiente rural), ao que associa uma fraca, ainda, implantação de unidades de saúde públicas. Esta realidade traduz-se, tal como noutros aspetos de funcionamento dos Estados, quer na ausência de dados, quer, também, na qualidade dos dados disponíveis para a tomada de decisões políticas baseadas em evidências analisáveis.
Em tempos de incerteza global, como os que viemos, é tentador ‘universalizar’ abstratamente o problema da pandemia e as suas possíveis soluções. Mas esta universalização implica pensar, incorretamente, que o problema se manifesta exatamente da mesma maneira em todos os lugares, desconsiderando os recursos locais e as abordagens alternativas. Esta universalização, que é fomentada por vezes pelos média ocidentais, tem gerado, como referia a revista New Scientist de maio, dá origem a inseguranças e meia-verdades, criando provavelmente mais problemas do que soluções.
A ‘exceção’ africana
A pandemia de COVID-19 tem-se alastrado pelo continente talvez mais devagar do que anteriormente antecipado. Face aos números disponíveis, há razões para temer o pior, embora em África, tal como na Europa ou nas Américas, a incerteza marque o curso desta pandemia. Uma leitura mais atenta pode ajudar a explicar o algumas das particularidades no continente.
Mais de metade da população do continente (1.2 mil milhões, que tornam o continente no segundo mais populoso, após a Ásia) tem menos de 18 anos, uma realidade que distingue África de outras regiões do mundo. Este é o resultado de uma fatalidade ignorada nos estudos macro da COVID-19: a baixa esperança de vida. Esse indicador é importante para analisar o impacto da COVID-19, pois que um dos seus traços específicos é a letalidade em idosos. Vantagem ou consequência desta fatalidade, os dados estatísticos da COVID-19, quando lidos fora do contexto, podem gerar interpretações equivocadas. Os africanos são seres humanos normais, e os idosos africanos são tão frágeis como os idosos de outros continentes. E há paralelismos: em vários países do continente africano, tal como da América Latina, por exemplo, o confinamento, ficar em casa, pode significar uma trágica opção: morrer de COVID-19 ou de fome.
Alguns estudos preliminares apontam outras pistas explicativas. Uma delas o facto de as populações africanas estarem em contato com várias infeções, o que pode desempenhar um papel protetor, ou ainda a tomada de medidas restritivas pelos governos, numa etapa inicial de propagação do vírus. Uma análise mais fina das realidades africanas sugere que, para além dos gastos com saúde, os países que melhor enfrentam a crise são os que têm investido, também, na educação, habitação, acesso à água, na eletrificação rural e em infraestruturas de internet. A COVID-19 mostra como importa investir mais nos sectores públicos que garantem o bem-estar das populações.
A comunicação
As lições das várias epidemias que têm fustigado o continente mostram a importância dos canais de comunicação, seja para divulgar alertas, seja para esclarecer dúvidas. Moçambique, um país onde a maioria da população não tem no português a sua língua materna, o acesso a um conhecimento seguro, recorrendo a uma língua em que as partes se sentem confortáveis, tem-se revelado fundamental. Um dos programas importantes é o ‘Alô Saúde’, uma linha telefónica gratuita onde jovens qualificados ajudam milhares de cidadãos, sobretudo das zonas rurais, no esclarecimento de como encarar a pandemia do novo coronavírus. Esta linha de contacto, um projeto que conta mais de uma década de funcionamento sobretudo na luta contra o HIV-SIDA, apoia agora nos esclarecimentos necessários sobre o coronavírus em português, inglês e em oito línguas nacionais de Moçambique. A equipa do ‘Alô Saúde’, que integra vários médicos, chega a receber 600 chamadas por dia. A este canal junta-se a plataforma digital educativa de informação sobre saúde ‘Pensa’, que existe desde 2017. Contando com o apoio das três operadoras nacionais de telemóvel, esta plataforma tem-se revelado central para esclarecer dúvidas sobre os sintomas, causas e medidas preventivas face ao novo coronavírus.
Em Dakar, no Senegal, os grafiteiros têm sido um elemento importante na campanha de alerta sobre a COVID-19; no Uganda, Bobby Wine juntou-se a Nubian Li e ambos lançaram uma música chamada Corona Virus Alert que explica as formas pelas quais o público pode lutar contra a atual pandemia.
Uma visão única sobre ‘África’ e as narrativas que insistem em vaticinar o mesmo destino a todos os países africanos, está profundamente enraizada num imaginário colonial que insiste em desconhecer as transformações dos seus 55 países. Insistir nesse imaginário retira a agência aos países africanos, em vez de apoiar as respostas epidemiológicas já existentes.
A COVID-19 tem mostrado a necessidade de uma aliança global de especialistas de vários tipos que, em conjunto com os estados e as organizações da sociedade civil, possam desenvolver a capacidades dos países africanos para produzirem os seus dados, que reflitam as suas situações. Mas mostra, sobretudo, a importância de escutar e compreender o Sul, a partir das suas diferenças, capacidades instaladas e contributo à luta global pela saúde da humanidade.
Maria Paula Meneses é investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, integrando o núcleo de estudos sobre Democracia, Cidadania e Direito (DECIDe). É doutorada em antropologia pela Universidade de Rutgers (EUA) e Mestre em História pela Universidade de S. Petersburgo (Rússia). Em 2019 foi investigadora visitante junto da Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. De entre os temas de investigação sobre os quais se debruça destacam-se os debates pós-coloniais em contexto africano, o pluralismo jurídico - com especial ênfase para as relações entre o Estado e as 'autoridades tradicionais' no contexto africano -, e o papel da história oficial, da(s) memória(s) e de ´outras´ narrativas de pertença nos processos identitários contemporâneos. Tem participado em vários projetos de investigação que resultaram na organização e publicação de vários livros e artigos. Lecciona em vários programas de doutoramento do CES, sendo co-coordenadora do programa de doutoramento em 'Pós-colonialismos e cidadania global'. Co-coordena com Boaventura de Sousa santos (CES) e Karina Bidaseca (CLACSO) o curso internacional 'Epistemologias do Sul' (CLACSO-CES). Anteriormente foi Professora da Universidade Eduardo Mondlane (Moçambique). Tem o seu trabalho publicado em diversos países, incluindo Moçambique, Espanha, Portugal, Brasil, Senegal, Estados Unidos, Inglaterra, Argentina, Alemanha, Holanda e Colômbia.