Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.
“É ainda por isso que esta epidemia não me ensina nada, senão que é preciso combatê-la a teu lado. Sei, de ciência certa... que cada um a traz em si, a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está imune à mesma... O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se o quiserdes, é um efeito da vontade e de uma vontade que nunca deve parar.”
Este é um extrato da Peste de Albert Camus. O mesmo evidencia que, em último caso, numa situação extrema de crise e de emergência, conta a solidariedade e a confiança, não o conceito abstrato e vazio de capital social, mas a força da vontade e a coesão do coletivo.
A pandemia do Covid-19 desenrola-se dentro dos pressupostos do capitalismo atual, adaptado tanto a um neoliberalismo feroz como a um estatismo ditatorial. No neoliberalismo reinante o Estado mantém a sua importância e, mais do que tudo, é essencial para a plena consecução das políticas neoliberais. O Estado é o último recurso para manter em funcionamento o sistema económico em situações de crise e resgatar, sem quaisquer custos a imputar às empresas, aos bancos ou aos agentes económicos, as perdas possíveis de negócios e de lucros. E mais, o capitalismo, na sua incarnação neoliberal, vai aproveitar a crise, as mortes, o sofrimento, as quarentenas, para aprender e se reestruturar, como bem ilustra a capa infame da edição do The Economist de 7 de março de 2020, com o título The right medicine for the world economy. Tudo, claro, assente na noção de “destruição criativa” de Schumpeter (pg. 60 da respetiva edição).
O estatismo ditatorial prevalecente no regime chinês seguiu o guião que já tinha sido mobilizado na crise da SARS em 2003, embora agora só na fase inicial. Manteve o secretismo, puniu os médicos que estavam reportando casos de pneumonia sem causas identificáveis e ativou mecanismos de contenção de forma tardia e dispersa. Posteriormente, e tal tem sido motivo de elogios em todo mundo, inclusive por parte da Organização Mundial de Saúde, implementou medidas draconianas, com quarentena de milhões de pessoas, limitação das liberdades e a ativação de uma vigilância feroz de cada cidadão e cidadã nas zonas afetadas, utilizando os telemóveis e as redes sociais, etiquetando os/as afetados/as com cores conforme o nível de contacto com a Covid-29 e alertando todas as pessoas sobre a proximidade de alguém infetado. Quão premonitório foi o artigo de Roger Clarke quando, em 1988, cunhou o conceito de “dataveillance” para caracterizar as infraestruturas emergentes de monitorização e de vigilância recorrendo às tecnologias de informação (ver a este propósito o interessante artigo de Deborah Lupton, publicado no seu blogue, sobre a quarentena digitalizada).
As pandemias dos séculos XX e XXI são o efeito direto dos processos de urbanização desenfreados, com a criação de conurbações gigantescas que penetram, ocupam e procuram domesticar espaços rurais ou vazios, albergando milhões de pessoas desenraizadas à força e concentradas em habitações insalubres, constituindo mão-de-obra acessível para todo o tipo de produção, como, por exemplo, Wuhan, o centro da pandemia Covid-19, conhecida como a nova Detroit dado o seu papel preponderante na construção automóvel a nível mundial (ver a estre propósito, o artigo de Keil, Connolly e Ali).
A nível de regulação do risco, a Organização Mundial de Saúde, ao recusar-se declarar o Covid-19 uma pandemia, por memória organizacional das declarações catastrofistas da sua anterior dirigente máxima, Margaret Chan, aquando da eclosão da Gripe A em 2009, induziu nos cidadãos e cidadãs uma perceção de falsa segurança e de menorização das medidas ativas de proteção. Tal verifica-se em Portugal, apesar do trabalho eficaz de comunicação de risco da Diretora-Geral de Saúde, Graça Feitas, com tomadas de posição firmes e indiciadoras de cenários mais pessimistas. Contudo, a experiência vivida pela população da Gripe A e a constatação do seu impacto mitigado, originou na prática uma menor proatividade nas medidas de precaução quanto ao Covid-19, visíveis na quase inexistência de recipientes de desinfeção das mãos em espaços comerciais e estabelecimentos públicos e nas normas diárias de convívio social e de saudação, além da ativação tardia dos planos de contingência, e muitos vezes de forma mitigada ou tímida.
A possibilidade de resposta a uma pandemia depende da força e qualidade das relações sociais, da robustez das instituições e de uma política de informação baseada na transparência e na atualização constante. Como bem refere Howard Merkel, no seu artigo na revista Wired, e cito: “Os casos históricos de maior sucesso a nível da saúde pública incluíram sempre confiança, relações de cooperação entre as autoridades de saúde, os dirigentes governativos e os cidadãos. No controlo epidémico, a comunicação aberta e constante, o aconselhamento psicológico, comida, água, conforto, entretenimento e instalações confortáveis e conectadas socialmente para os que estão de quarentena são também essenciais”.
A pandemia do Covid-19 é um teste à qualidade das instituições democráticas, à qualidade dos serviços médicos e sanitários e à força dos laços sociais e da solidariedade. Só uma política de verdade e transparência poderá vencer este desafio, bem como a participação informada de todos e todas nesta caminhada que exige ponderação, sensibilidade e proatividade.
José Manuel Mendes é doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde exerce as funções de Professor Associado com Agregação. Investigador do Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas áreas do risco e da vulnerabilidade social, planeamento, políticas públicas e cidadania. É coordenador do Observatório do Risco - OSIRIS, sediado no Centro de Estudos Sociais, e Diretor da Revista Crítica de Ciências Sociais.