Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.
Ilustrações de Raquel Pedro
N’weti dobrou as costas e as pernas e deitou a cabeça no colo de Wezu.
- A minha filha morava longe de mim. Muito longe.
- Mãe tens que vir para o pé de mim.
- Mas como se aí onde tu estás não tenho casa?
- Mãe vem até cá e falamos com o soba Simba Kokwana. Ele já é um soba com mais futuros do que passados. Vem mãe, vamos falar com ele. Eu vou pedir um encontro e tu vens, mãe.
Cheguei e a minha filha estava à minha espera com um grande sorriso. Em casa e depois de nos sentarmos na fresca sombra da amendoeira e beber um copo de água ela disse-me:
- Mãe consegui marcar o encontro para amanhã de manhã bem cedo. Ele vai estar na casa da administração de Xixoxo com o seu conselho de anciãos. Isso é bom, não é? Mas mãe, não podes ir assim vestida. Tu sabes, não sabes? Mãe, tens que amarrar uma capulana na cintura e por o lenço. Ele não recebe as mulheres que não forem assim vestidas!
Wezu, tive vontade de gritar com ela e com toda a gente que ali estava: aonde estão os frutos da libertação, mulheres? Não são nossos também? Aonde enterraram o coração da liberdade que pagámos com o sangue das nossas vaginas e os nervos de aço dos nossos corações? Contive-me porque ela é a minha filha e eu disse mais uma vez a mim mesma que mais valem os nervos de aço do meu coração do que a raiva semeada por essa coisa a que chamam tradição que mais não é que um pé de bota suja em cima dos nossos seios para que o grito não saia e o medo nos emprenhe nas veias mais fundeiras do nosso ventre.
Mas lá fui, de manhãzinha, o sol despedindo-se da lua que mostrava os seus belos cornos impondo-se como uma coroa altiva. No fundo da estrada de chão lá estava a casa redonda e baixa onde os conselheiros, todos homens, todos velhos, todos secos se reuniam na escuridão circular interior. Junto à pequena e única abertura da casa ficava o soba sentado no banco de três pernas. Distingui nele e mais do que tudo a enorme barriga tão inchada como um malambe e luzidia como as escamas de um peixe. A minha filha alertou-me então:
- Mãe, baixa os olhos, não olhes para ele directamente, está bem? É o respeito.
Ai que raiva! Mas o silêncio da minha voz manteve-me amarrada ao lenço à volta da cabeça e os meus olhos ficaram detidos pela visão de uma formiga que carregava nos seus ombros comida para mais de cem dias.
- Então, mulheres, o que querem de mim?
- A minha filha vive longe de mim e eu queria vir viver para junto dela. Preciso de terra para fazer uma casa e a minha machamba. Sabemos que tu tens terras vazias.
- O quê?
Gritou ele com um ronco profundo acompanhado das gorduras da sua barriga enormíssima.
- Porque haveria eu dar terra a uma mulher? Tu não sabes que as mulheres não têm direito a ter terra?
Eu rodei os pés para sair dali imediatamente mas a minha filha puxou com força a ponta da minha capulana e percebi que ela queria que eu tentasse mais uma vez, com mais e melhores argumentos, com mais choros, com súplicas e favores. Mas eu apenas consegui dizer-lhe:
- Como está a tua saúde? Pareces um pouco doente?
- Tu és médica por acaso?
- Precisas de alguma coisa que eu possa fazer por ti?
- O meu pau já não funciona. E isso é mau para a minha autoridade dentro de casa e também aqui na casa do governo. Há muitos meses que o meu pau foi comido pelas formigas do medo. E sem pau entre as pernas a funcionar as minhas mulheres e os meus homens não me respeitam. Achas que podes fazer alguma coisa por mim?
Wezu, apertei os dedos das duas mãos até me doerem para não responder que o pau dele, de todas as coisas da vida, era o que menos me interessava. Mas mais uma vez, com todas as clandestinidades aprendidas em tantos séculos e milénios de resistências deixei que a minha voz enrouquecesse mas falasse para ele.
- Sim, posso ajudar-te. Sei o que fazer. Para isso tenho que voltar para casa e fazer uma bebida que te vou mandar. Tu ficas e só podes comer as verduras da machamba das tuas mulheres, a abóbora e o feijão. Tens que beber muita água do rio filtrada pela terra vermelha onde está construída a tua casa. Tens que andar todos os dias daqui até onde os cornos da lua se levantam em cada noite. Se fizeres o que te estou a dizer afirmo que, em seis meses, o teu pau vai funcionar e o teu corpo vai agradecer.
- Mulher, se isso for assim dou-te toda a terra que tu quiseres.
Eu não respondi apenas rodei nas pernas e fui embora arrancando o lenço e a capulana assim que a poeira da estrada diluiu os nossos corpos, o meu e da minha filha, na nuvem das suas partículas. Decidi fazer a beberagem e enviá-la. Espremi maracujá, pilei folhas de moringa, juntei água, mel e flores de hibisco. Fiz doze garrafas e preparei a encomenda. Arregimentei o acordo que me dava as terras e o direito de construir a minha casa e plantar os meus cajueiros. Pedi respostas prontas e claras. Passados os seis meses vi que o séquito do soba se dirigia à minha casa.
Segui à risca os teus remédios. Tenho força e durmo bem. Como apenas o que me mandaste e bebi três vezes por dia um copo do teu medicamento. E agora as minhas mulheres já não se podem queixar porque o meu pau está de novo a funcionar. Elas dizem que até melhor do que quando eu era novo. Estou tão feliz que resolvi que toda a gente de Xixoxo só pode comer hortaliça, abóbora e feijão nhemba. Beber só podem beber água filtrada pela terra vermelha. Mas falta saber fazer os medicamentos. Trouxe a mulher mais bonita de Xixoxo para ficar contigo e aprender a fazer esse sumo de espíritos fortes que me deste.
Wezu, sabes o que eu fiz? Levantei a cabeça e olhei-o no meio dos olhos. Estava sem capulana nem lenço e ainda deixei cair a blusa pelos meus ombros abaixo e empinei os meus mamilos diante dele. Falei forte, falei alto, falei sem medo e sem o deixar entrar no pátio da minha casa:
- Se ela quiser ficar pode ficar. Mas só se ela quiser ficar.
Simba Kokwana e a comitiva espantaram-se com os meus preparos e a minha voz cheia de afirmações em vez de pedidos. Mas não entraram no meu pátio e pediram à menina para ir falar comigo. Falámos até que a noite avançada já mostrava a lua grande e vermelha que ansiava por deixar os seus cornos à vista de toda a gente
- Wezu, agora já é noite e o teu regaço está quente como um ninho. Tu também sabes que a raiva semeada por essa coisa a que chamam tradição que mais não é do que um pé de bota suja em cima dos nossos seios para que o grito não saia e o medo nos emprenhe nas veias mais fundeiras do nosso ventre é para rasgar e pisar debaixo dos nossos pés, não sabes?
A luta continua!
Este texto é uma co-autoria entre Teresa, Patrícia, Wezu e N’weti e é a nossa reflexão sobre a Escola de Inverno Ecologias Feministas de Saberes II - Saberes e Práticas para a C[u]idadania