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Reflexão
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Anti-Capitalismo
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Les misérables riches III – Não somos pessoas, somos cabritos
AN Original - Alice Comenta
2019-12-10
Por Teresa Cunha

Moçambique vive no presente um ciclo de capitalismo financeiro-extractivista baseado em mega-projectos. Por outras palavras a sua economia está baseada na extracção de recursos minerais, energéticos e na exploração intensiva dos recursos piscatórios, silvícolas, agrícolas e fundiários que determina o seu lugar na economia política da divisão internacional do trabalho e da produção.

Diferentes trabalhos de investigação académica, jornalística e também de activistas dos movimentos sociais têm colocado em evidência que tem havido uma transferência maciça da riqueza gerada pelas actividades extractivas para as corporações internacionais e as elites locais. Neste panorama, a condição de vida das mulheres e das meninas tem sofrido sérios revezes e a sua invisibilidade nas pesquisas, notícias, relatórios e análises mostra bem o carácter androcêntrico do que parece saber-se e do se fala sobre Moçambique, conflitos, presente e futuro.

Nesta reflexão vou-me dedicar a identificar alguns dos problemas que se estão a manifestar na província mais a norte do país e que faz fronteira com a Tanzania através do rio Rovuma: Cabo Delgado. Ao longo deste texto procuro mostrar duas coisas principais: a primeira é a enorme complexidade e brutalidade do que se está a passar; a segunda, é que as mulheres praticamente desaparecem, tanto das imagens do território como das paisagens analíticas. Quem fica são os homens fardados: uns com os uniformes militares, outros com os fatos azuis e gravatas da administração ou universidade e bandeiras nas lapelas, e ainda outros com as calças que não tocam o chão e as suas barbas compridas. Onde estão elas? O que fazem e o que pensam? Deixarei no final que surjam algumas das suas palavras que nos incitam a pensar de outra maneira sobre tudo isto.

Segundo os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística de Moçambique, em Cabo Delgado vivem 2.320.261 pessoas das quais 51,6% mulheres e 48,4% homens sendo que 83,2% da sua população habita em meio rural e dedica-se ao cultivo das suas machambas e/ou à pesca. Desde o início de Outubro de 2017 muitos episódios de violência têm vindo a acontecer e as pessoas já não têm dúvida em chamar àquilo tudo, uma guerra.

Os desafios que se apresentam para Cabo Delgado, são muitos pois começa a ser claro que esta guerra é tudo menos convencional e que as suas razões são complexas e profundas. Sabem-se algumas coisas sobre o que está acontecer mas também se percebe que se está muito longe de compreender a dimensão real do problema. Sem pretender fazer uma qualquer lista exaustiva, pode-se contudo mencionar o seguinte sobre esta província moçambicana:

  • é um território particularmente rico em recursos como: areias pesadas, carvão, metais semi-preciosos e preciosos como turmalinas, corundo, rubis, granadas, safiras, ouro, grafite, granitos, mármores, gás, petróleo, florestas, terras aráveis e férteis, paisagens e culturas
  • a exploração dos recursos, nomeadamente os minerais e energéticos, faz com que a província faça parte de uma região com interesse geoestratégico para as disputas das potências globais mundiais e outros países com interesses na região. Estão presentes na província corporações com sedes nos seguintes países do mundo: Estados Unidos da América, Japão, Índia, Tailândia, Reino Unido, Coreia, Portugal, China, Malásia, Noruega, França, Itália e Moçambique.
  • a província tem um histórico de guerras sucessivas:  as da disputa entre europeus pelo controlo da costa e do fluxo e comércio de riquezas do interior do continente no século XIX; as chamadas ‘guerras de pacificação’ do final do século XIX e início do século XX que mais não foram guerras de ocupação e domínio territorial por parte do regime colonial português; e na segunda metade do século XX a guerra de libertação e a guerra dos 16 anos. Isto tem resultado na militarização da sociedade, deslocações forçadas, despojo de terras, padrão violento de resolução dos conflitos, trauma e acentuação das identidades violentas e autoritárias
  • a presença inédita e repentina de muitas pessoas de muitos lugares do mundo com estilos de vida e estatutos estranhos ao quotidiano das populações. Essas pessoas são chamadas de vientes.
  • a chegada desses vientes ajuda a explicar alguns dos fenómenos que no entendimento das pessoas locais estão na base de vários dos seus problemas como por exemplo: a falta de emprego, a prostituição das mulheres e das meninas, o roubo de terras, a ganância (faída) e a desvirtuação das culturas locais e dos sistemas de autoridade e o fecho dos caminhos para o mar.
  • com os dados disponíveis o Observatório do Mundo Rural em Maputo elaborou um mapa onde se podem ver os locais onde a violência tem estado mais activa  na província e os locais de exploração de minérios e de recursos energéticos. O resultado aparente é que existe uma relação entre uma coisa e outra. Isto significa que, onde existem mais riquezas, existem também mais concentração de ataques, mortes e destruição dirigidos às populações residentes nesses territórios.
  • sobre a autoria dos ataques há várias explicações que são avançadas e que permitem perceber até que ponto a província de Cabo Delgado hoje é um palco de guerra onde se digladiam variadas forças militares e paramilitares: grupos ligados a forças de segurança privada das corporações; grupos de mercenários russos cuja contratação e comando ainda não está completamente explicada e comprovada mas correm rumores sobre a possibilidade de estarem a agir a mando de elites Macondes; Forças de Segurança do Estado; grupos de bandidos; grupos com relações à insurgência islâmica na região e no continente; exércitos particulares para a protecção das rotas de comércio e transporte de estupefacientes vindos da Ásia com destino ao ocidente.

Mas então onde estão as mulheres e o que nos dizem?
Ouvimo-las contar, algumas que conseguiram sair de Mocímboa da Praia no norte da província e uma das zonas mais castigadas por esta guerra, que as pessoas já não dormem nas suas casas por medo de serem mortas. Refugiam-se no mato durante a noite e durante o dia são impedidas de fazerem os seus negócios, cultivar as machambas ou ir pescar. Sentem-se encurraladas e totalmente abandonadas à sua sorte. Uma delas, a que vou chamar de Farida, contou que teve que fugir nua da sua casa quando ela e a sua família foram atacadas há algumas semanas. O grupo de atacantes tirou-lhe todas as suas capulanas e preparava-se para queimar a sua casa quando ela decidiu correr nua, diante das filhas e filhos e sua vizinhança, pelas ruas da sua aldeia até ao mato, tentando livrar-se da morte.

Elas explicam que as mulheres que tentam ir às suas machambas para cultivar ou ir buscar comida já não voltam. Elas sabem que podem ser mortas ou apanhadas e dadas como ‘esposas’ aos homens dos grupos que têm estado a aterrorizar a região para depois aparecerem despedaçadas, os corpos cortados aos pedaços, e abandonadas para serem comidas pelos animais selvagens.
- Nós já não somos pessoas, somos cabritos. Aqui, nesta terra, come-se o que não se produz e se produz o que não se come. Estamos a sofrer muito e não sabemos a quem pedir socorro.

As alternativas são muito difíceis de imaginar e ainda é mais difícil de as colocar em prática. Porém elas estão, certamente, a acontecer a uma escala e com lógicas talvez ainda incompreensíveis para nós. Mas uma coisa já é clara, nas poucas palavras das mulheres que chegam a pronunciar os seus sofrimentos e pensamentos encontramos subjectividades que nos falam de causas, efeitos e caminhos possíveis para começar a pensar a partir de dentro o que é preciso fazer para se chegar à paz e à  justiça. Onde as capulanas e os cabritos voltem a ser parte da dignidade plena de cada uma das mulheres e meninas, sejam elas Macondes, Macuas, Mwanis, ou Yao. 


Teresa Cunha é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena a publicação 'Oficina do CES', os ciclos do Gender Workshop. Coordena a Escola da Inverno 'Ecologias Feministas de Saberes' e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. É professora-adjunta da Escola Superior de Educação do Instituto Superior Politécnico de Coimbra e investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017, foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; outras economias e economias feministas mulheres; transição pós-bélica, paz e memorias; direitos humanos das mulheres no espaço do Índico. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.