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Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
O novo governo Italiano e o tema complexo da democracia dentro dos partidos
AN Original - Alice Comenta
2019-09-10
Por Cristiano Gianolla

Este artigo faz parte da série Alice Comenta da autoria da equipa do Programa de Investigação Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


As críticas à democracia liberal têm vindo a intensificarem-se à medida em que o modelo económico neoliberal expande o seu poder dentro das instituições do estado. Nas últimas três décadas a ciência política e a sociologia têm estudado em profundidade as dificuldades encontradas pelos princípios democráticos nas práticas institucionais. Uma das questões mais focadas é a democracia dentro dos partidos. Aguiló analisou como esta questão foi central dentro dos movimentos sociais no início da década de 2010, como é o caso de Que se lixe a troika, Indignados, Occupy, etc., e outros que se manifestaram em várias regiões do mundo contra a falta de representatividade da população nas instituições.

Pode parecer evidente que mais democracia dentro dos partidos se reverta numa maior qualidade democrática. Contudo,Cross e Katz  estudaram a complexidade desta questão mostrando como não é possível simplificar esta expectativa através de uma indubitável equação que maior participação leva a mais democracia. Isto tem que ver com o papel específico dos partidos num dado contexto institucional, social, político e económico, mas também com questões como: que aspetos das atividades partidárias devem ser incluídos nas determinações democráticas (a seleção das candidatas, a definição da estrutura do partido, a linha política do partido, a decisão sobre políticas públicas especificas etc.)? Que valores democráticos devem ser priorizados (representatividade das diversidades ou participação individual)? Quem deve ter poder na tomada de decisões (poucas pessoas bem informadas e experientes ou todas aquelas que querem participar)? Quais são os custos e benefícios de diferentes modelos de democracia interna nos partidos (qualquer modelo privilegia alguns aspetos e sacrifica outros)?

São questões que não só não terão uma resposta unívoca a nível filosófico, como dificilmente se apresentarão com uma explicação definitiva num determinado contexto político, visto que as variantes são dinâmicas. Vale a pena centrar-se em casos específicos e fazê-lo em relação a contextos políticos concretos. Ainda assim não teremos respostas aplicáveis em geral, mas poderemos ponderar esta questão com maior proximidade. Vou, portanto, propor algumas breves reflexões sobre a recente formação do governo Italiano no início de setembro 2019, um caso interessante porque incluí também um dos partidos que emergiram entre finais da década passada e início da presente, favorecido pelo descontentamento contra o establishment político.

Em agosto 2019, o leader da Liga, Matteo Salvini, denunciou Giuseppe Conte, o primeiro ministro do governo que ele próprio integrava, e provocou uma crise política esperando chegar rapidamente a eleições antecipadas e poder, assim, capitalizar o consenso eleitoral que as sondagens projetavam entre 35 e 38 porcento. Diferentemente do auspiciado por Salvini, o outro partido de governo, o Movimento 5 Estrelas (M5S), conseguiu formar um novo governo com o Partido Democrático (PD) após uma longa e difícil negociação, evitando assim as eleições. Enquanto a antiga aliança entre M5S e a Liga era marcadamente identificada à direita, a aliança entre M5S e PD é substancialmente marcada à esquerda. Trata-se duma mudança que o M5S defende enquanto partido pós-ideológico, mas que reforça os conflitos existentes entre as diferentes orientações políticas no partido. Para evitar problemas de legitimidade, assim como tinha sido feito na hora de aprovar o 'contrato de governo' com a Liga, a liderança do M5S decidiu que a avaliação da aliança com o PD, sob Conte, fosse dada pela própria membership, ou seja, pelas pessoas inscritas na plataforma participativa e privada do partido, chamada de Rousseau. Frente a um momento de profunda crise política, e de possíveis repercussões económicas que a Itália poderia vir a enfrentar, foram muitas as vozes que acharam problemático que o governo fosse formado pela decisão da plataforma Rousseau. Outras pessoas criticaram a diferença de substância entre votar pela aprovação dum contrato pormenorizado (com a Liga), e agora por uma aliança baseada apenas em temas gerais, com o PD.

O ano passado publiquei um estudo analisando o modelo da tomada de decisões do M5S e a relação entre a base e centro do partido. Realço que os pontos fracos deste sistema não só têm que ver com o poder da liderança a partir de quando, como e de que forma abrem as votações no processo de decisão, mas também com a influência da mesma na decisão final. De facto, neste caso, como no passado, houve uma manifestação generalizada a favor da aliança com o PD, a partir do fundador do M5S, Beppe Grillo, sendo o resultado da consultação de 79.3% a favor da formação do governo. Penso que estes pontos fracos mostram como não é possível igualar maior participação com mais democracia. Considero, portanto, que quem infere que o M5S tenha chegado a esta decisão com um voto dos membros, não pode exigir que a mesma coisa seja feita pelo outro partido de governo - o PD que não tem uma infraestrutura de tomada de decisões apropriada. Mas o contrário é igualmente válido: como pode o PD exigir que o M5S tenha chegado a uma decisão deste tipo, usando um modelo de tomada de decisões puramente centralista como o seu, baseado numa estrutura de partido escalar que o M5S não tem?

Uma das críticas feitas era: o que acontece se a base do M5S não aprovar a formação do governo? Será correto que o voto atomizado (enquanto baseado na preferência individual) de pouco mais de cem mil pessoas numa plataforma online decida se um país deve ou não ter um governo? A mesma pergunta vale ao contrário: será correto que a direção de um partido (se não o seu secretário geral sozinho), tome esta decisão? Eu penso que estas perguntas não têm respostas definitivas, assim como não é possível definir qual dos dois modelos seja o mais democrático. Parece-me que estas questões pertencem ao domínio da política e, como tais, devem ser respondidas com configurações diferentes. Mas, de que forma é que isto não colide com a necessidade de aumentar a qualidade da democracia?

Quero acreditar que a emergência destas questões seja em si um aspeto positivo da vida democrática duma comunidade política. Certamente que o M5S não tem uma democracia interna perfeita e exemplar, mas faz surgir no debate público questões que o próprio sistema de partidos deve considerar cada vez mais. Enquanto os modelos de democracia interna nos partidos evoluem, é fundamental que o debate sobre estes temas permaneça vivo e que abranja esferas institucionais a todos os níveis, inclusive o governamental.


Sala do Conselho dos Ministros (Palazzo Chigi, Roma), Fonte Wikipedia.otg

Na hipótese de conseguir um modelo participativo mais avançado, deveria a membership dos partidos poder não apenas decidir sobre a constituição duma aliança, mas também sobre outros aspetos tais como: a composição do executivo e as prioridades democráticas? Não implicaria isto uma gestão completamente diferente da comunidade política que resulta inverosímil? Além dos obstáculos relativos aos tempos longos de tomada de decisões participativas contra os tempos curtos das decisões políticas, existem as perdurantes questões de inclusão democrática relativas às questões sociais de classe, género, sexo e (não)cidadania, e também de disponibilidade, vontade e aptidão à participação das e dos cidadãos a estes processos. E por fim: é desejável que todas e todos decidam sobre tudo, inclusive sobre questões que implicam um saber especializado? Surge, porém, a pergunta basilar: estas dificuldades não existem igualmente em relação às eleições políticas e administrativas ou em relação a referendo?  

Aqui chegamos a um ponto central do debate: na democracia votar corresponde a decidir, mas a decisão é qualitativamente melhor se informada por um conjunto de situações e dinâmicas que acabam por ser simplificadas num voto entre poucas opções, muitas vezes apenas entre duas. Uma das razões do crescimento dos fenómenos populistas reside, de facto, nesta redução essencialista da complexidade do real a uma decisão simples (o voto), descontando o facto que o processo informativo passa pela demagogia do discurso político. Isto baseia-se na ideia da delegação nos representantes institucionais que despolitiza o resto da população, sem prejuízo dos instrumentos institucionais, para manter a delegação num domínio controlado. A democracia, desta forma, caracteriza-se pela demagogia, que conjuga os fatores da complexidade participativa em proveito de interesses particulares. Assim sendo, deverá articular-se com formas participativas que possam contribuir para diferenciar o ‘domínio controlado’ das instituições com a contribuição da população que detém o poder decisivo nominal. Neste sentido, deve haver uma busca constante pela democracia dentro partidos, que será tanto maior quanto mais permitir à população contribuir e ser efetivamente relevante (não meramente votando) para a definição da vida democrática da instituição. 


Cristiano Gianolla é investigador Post-doc no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Os seus interesses de pesquisa estão na interseção dos estudos interculturais, da democrátização e pós-coloniais. Atualmente integra a equipe de pesquisa do projeto ECHOES (H2020) e integrou a equipe de pesquisa do projeto ALICE (ERC 2011-2016). É Autor de dois livros e de varios artigos ciêntificos.