pt
Reflexão
Original
Anti-Colonialismo
Viver em Timor-Leste 20 Anos depois – Das memórias da resistência ao presente das lutas
AN Original
2019-09-04
Por Marisa Ramos Gonçalves

No passado dia 30 de agosto celebrou-se o 20º aniversário do Referendo de Timor-Leste, realizado sobre a égide da ONU, que abriu portas para a restauração da independência do país em 2002. A organização das comemorações teve como objetivos principais celebrar o caminho percorrido pela jovem nação e reconhecer o trabalho da extensa rede de solidariedade internacional, tendo diversos representantes oficiais e activistas internacionais visitado o país. Para além disso, foi a data escolhida para a troca de notas diplomáticas entre Timor-Leste e a Austrália para a ratificação do novo tratado das fronteiras marítimas, depois de um longo período de disputas.

Durante esta semana e a próxima o Canal CES divulga as sessões do Colóquio "Memórias, Arquivos e Conhecimento – 20 Anos da Consulta Popular de Timor-Leste" que decorreu a 24 de junho no CES Lisboa, uma organização conjunta entre o Centro Nacional Chega! e o CES. Desde 2017 que este centro iniciou as suas atividades nas áreas de preservação da memória, educação das novas gerações, reconciliação e solidariedade com os sobreviventes mais vulneráveis do conflito, tendo como missão divulgar as recomendações do Relatório Chega!, publicado pela Comissão Acolhimento, Verdade e Reconciliação em 2005. Uma das sessões conta com um conjunto de testemunhos de Timorenses de várias gerações, a viver no país e na diáspora, sobre as suas vivências durante os meses que antecederam o anúncio da Consulta Popular da ONU em agosto de 1999, no seu decorrer e até à chegada da Força de paz INTERFET ao país.


Depois de 24 anos de resistência contra a ocupação da Indonésia nas montanhas, nas vilas e cidades do território e na diáspora, as e os Timorenses viram a possibilidade de votar pela autonomia especial dentro do território da Indonésia ou pela sua rejeição (independência), encarando-a com um misto de alegria e ansiedade. Os massacres e perseguições aos apoiantes do Conselho Nacional de Resistência Timorense (CNRT) e contra a população civil começaram no início de 1999 e resultaram em cerca de 1500 mortos. Grupos milicianos, com Timorenses armados e treinados pelos militares indonésios (TNI), perpetraram vários massacres e forçaram a deslocação de 250.000 pessoas para Timor Ocidental, depois do anúncio dos resultados do referendo no dia 4 de setembro. Apesar disso, 98,6% dos votantes afluíram às urnas, fugindo para as montanhas logo em seguida. Nos dias que se seguiram, com o anúncio da vitória da independência (78,5%), a campanha de terror estendeu-se pelo território e resultou na destruição de 70% das infraestruturas do país. O ataque aos refugiados na Igreja do Suai fica guardado na memória como um dos mais sangrentos, envolvendo violações de mulheres, mortes de crianças e a execução de cerca de 200 pessoas.

Como é viver em Timor-Leste 20 anos depois, sob o espetro destas perdas humanas irreparáveis e com uma primeira geração de Timorenses já nascida depois do Referendo de 1999?

O conto Tuu ho Bua-malus Been (Voto com betel e areca, 2017) do poeta Dadolin Murak, narra a história de uma mulher que vai votar nas últimas eleições legislativas e que cospe no boletim de voto o líquido vermelho da masca (Bua-malus been). A prática timorense Mama bua-malus expressa sentido de partilha em família e comunidade. Neste acto de protesto dirigido aos governantes, ela mancha de vermelho o boletim de voto em representação do sangue vivo do seu filho morto pelas milícias a seguir ao referendo, desta forma exigindo justiça pelo seu desaparecimento. Esta é uma reivindicação frequentemente proferida em Timor-Leste para dar conta da insatisfação das pessoas com os problemas que prevalecem no país, lembrando que esta é “uma nação comprada com o sangue” de muita gente.

O país que nasceu da destruição massiva em 1999 tem dado passos significativos na manutenção da paz, constituição de instituições de estado, processos de reforma legislativa, ratificação e implementação de várias convenções da ONU, implementação de medidas de igualdade de género nas instituições do estado, na criação de um fundo petrolífero, garantia de liberdades, com destaque para a liberdade de imprensa, sendo considerado o país mais livre na região do Sudeste Asiático. O caminho percorrido é imenso, sendo a maior concretização, sem dúvida, a possibilidade de viver em liberdade e em paz, depois da longa colonização portuguesa, a ocupação japonesa e nova colonização pela Indonésia.


Em Timor-Leste cerca de 70% da população tem menos de 25 anos| Fotografia: Marisa Gonçalves

No entanto, as críticas apontam para o aumento da desigualdade entre os mais ricos e os pobres, elevadas taxas de subnutrição infantil, reduzidos investimentos em serviços básicos de acesso à água, saneamento básico e saúde, uma economia dependente das receitas do petróleo, fracos desenvolvimentos na área da agricultura, turismo e educação, elevadas taxas de desemprego, em particular entre os mais jovens, que representam cerca de 70% da população do país.

As nuvens ameaçadoras no horizonte levam muitas/os Timorenses, incluindo a geração mais jovem, a questionar a direção das políticas do país e a adoptar uma postura crítica das políticas governamentais excessivamente focadas, a seu ver, em megaprojetos e infraestruturas da indústria petrolífera sem garantias de sustentabilidade.

Por outro lado, as memórias de outras lutas e do activismo por direitos e dignidade continuam a influenciar ideias contemporâneas de justiça e direitos em Timor-Leste, em particular entre a gerasaun foun, educada durante o período indonésio, e a mais jovem gerasaun independénsia que viveu os primeiros anos da independência. A “memória exemplar”, memória que é mobilizada como princípio para acção no presente de que nos falava Tzvetan Todorov, é, não raras vezes, um traço das lutas contemporâneas em Timor-Leste. Exemplo disso é a reivindicação dos direitos aos recursos naturais na disputa com a Austrália, invocando as lutas passadas pela independência do país.

Nesse sentido, várias iniciativas de grupos de ativistas locais celebraram no Festival Solidariedade os 20 anos do Referendo, relembrando outras lutas pela independência no Sahara Ocidental, na Papua Ocidental e as lutas contra interesses das indústrias extrativas na Austrália. Numa altura em que as notícias relatam a violência exercida pelo exército Indonésio contra manifestantes pró-independência no território da Papua Ocidental, torna-se difícil não encontrar paralelos entre a situação de Timor-Leste de há 20 anos atrás e a situação presente deste antigo território colonizado pela Holanda. Em Timor-Leste, estudantes, ativistas e membros da sociedade têm manifestado o seu apoio ao movimento, apesar da Polícia Nacional timorense ter proibido manifestações durante o dia das comemorações do referendo.

Outro protesto, agendado para o dia 30 de agosto pelo Movimento Kontra Okupasaun Tasi Timor (Movimento Contra a Ocupação do Mar de Timor), visou o primeiro-ministro australiano de visita ao país e o atual processo judicial movido contra o advogado Benard Collaery e a Witness K, um funcionário dos serviços secretos australianos delator num processo sobre espionagem durante as negociações do mar de Timor. Estando Timor-Leste e a Austrália a fazer progressos significativos na resolução de disputas em torno da partilha de recursos petrolíferos, este caso continua a ser “uma pedra no sapato” das boas relações entre os dois países.


Festival Solidariedade em Dili manifesta apoio a movimentos independentistas| Fotografia :Rogério Sávio

Timor-Leste celebra, por isso, a resiliência de um povo que resistiu a vários regimes coloniais e ciclos de violência extrema, afirmando teimosamente a sua vontade de independência contra as premonições de ser demasiado pequeno e frágil e de ter países poderosos como os EUA e Austrália ao lado do exército e governo da Indonésia. Contou com uma extensa rede de solidariedade internacional que mobilizou opiniões públicas, envolveu políticos e diplomatas, várias Igrejas, do Japão ao Sri Lanka, de Moçambique a Portugal, ao Canadá. A geração mais jovem, que não integrou a luta da resistência, enfrenta hoje lutas igualmente difíceis contra as novas faces do colonialismo, pela defesa dos seus direitos essenciais à educação, saúde e a uma vida mais digna.


Marisa Ramos Gonçalves é investigadora do CES, bolseira Marie Sklodowska-Curie/ Widening num projeto que investiga a solidariedade entre Moçambique e Timor-Leste na luta pela independência, em particular na área da educação. É membro do Conselho Consultivo Internacional do Centro Nacional Chega!, instituto de memória de Timor-Leste. Foi docente e investigadora visitante na Universidade Nacional Timor Lorosa'e entre 2007 e 2012.