O modelo baseado em mega-projectos e o extractivismo intensivo seguido por Moçambique tem provocado a degradação das condições de vida da maioria da população no que respeita à habitação, trabalho, segurança e bem-estar, acesso à terra, água potável, sistemas de saneamento, garantia dos modos de vida e de identidade, vulnerabilidade perante desastres ambientais e poluição. Não é pois de admirar que estas diferentes camadas de violência têm provocado deslocações forçadas, o aumento da violência contra as mulheres e as meninas e a destruição de modos de vida, conhecimentos e de regimes de legitimidade da autoridade das mulheres. Neste artigo, o segundo da série sobre Moçambique e o extractivismo, reflicto sobre as deslocações forçadas que estão a ocorrer e alguns dos seus impactos.
Em Moçambique a experiência da deslocação forçada é, infelizmente, recorrente. Sob o poder colonial português as populações foram sendo empurradas e expulsas dos seus locais de vida para permitir a guerra de ocupação, a exploração agrícola intensiva e a mobilidade dos colonos. Sabemos que isso teve impactos fortes nas estruturas da sociedade e reduziu à pobreza a maioria da população. As guerras, tanto a de libertação (1963-1974) quanto a dos 16 anos (1976-1992), que se seguiu à independência, e os anos de conflito político-militar desta década (2013–2017), no centro do país, também foram responsáveis por enormes fluxos de pessoas em fuga ou obrigadas a abandonar as suas machambas, os seus rios, os cemitérios, as casas, as suas árvores, os seus ancestrais, com todos os traumas e perdas que isso implica.
No contexto actual do recrudescimento das actividades extractivas, podemos observar que estas têm implicado sempre o despojo de territórios e a deslocação de enormes faixas populacionais. Este fenómeno, que se tem vindo a chamar de reassentamento, está regulado por um aparato jurídico do qual se destacam a Lei de Ordenamento do Território, Lei nº 19/2007 e o Decreto nº 13/2012 mas que a maior parte das explorações não respeita nem aplica. Para a nossa análise, importa-nos realçar que o uso e a consequente naturalização da expressão ‘reassentamento’ em detrimento de ‘deslocações forçadas’ tem várias consequências na forma como se entende, descreve e se pensam as soluções para os problemas criados. Em nosso entendimento, ao designar estes fluxos de pessoas de ‘reassentamentos’ induz a pensar que se trata de uma busca bem-sucedida de novos locais de vida para as populações que foram movidas depois de indemnizadas pelos seus bens e terras. Segundo sucessivos relatórios e estudos efectuados nos últimos anos isto não parece confirmar-se. Por outro lado, a palavra reassentamento esconde o carácter extremamente violento e coercivo inscrito nesta experiência de ter que, compulsoriamente abandonar o seu território, vizinhança e modos de vida ocultando a economia política que está no seu centro. Por último corre o risco de despolitizar, no âmbito dos debates públicos tanto a nível local, quanto regional ou nacional, o que afinal aconteceu e está a acontecer nas zonas de alto impacto das economias com base na extração maciça, nomeadamente em Inhambane, Zambézia, Tete, Nampula e Cabo Delgado. Outro dado importante é que não existem estudos que determinem com rigor a extensão deste fenómeno. Existem estimativas para cada um dos casos mais conhecidos de expropriação para instalação de unidades de exploração de recursos como os das comunidades de Moatize em Tete, Palma e Namanhumbir em Cabo Delgado. Porém não se conhece a dimensão ao nível nacional e, muito menos, a importância e o perfil da intersecção entre as diferentes formas de violência (guerra, extracção, reordenamento fundiário nas cidades) que estão a provocar estas deslocações forçadas e a efectuar transformações profundas na sociedade moçambicana.
Uma dessas transformações prende-se com a destruição dos modos de vida das pessoas e, portanto, do acesso a recursos vitais e de garantia da dignidade. Vários estudos têm vindo a analisar e a demonstrar como as populações estão a ser afectadas e como os seus modos de vida atacado ou mesmo destruídos. Seja isso na orla marítima, ribeirinha ou no interior, a análise apoiada tanto na observação cuidadosa do terreno, diplomas legais, contexto histórico e cultural, quanto nas narrativas próprias das pessoas que são o alvo deste fenómeno, revela e comprova o carácter destrutivo que estas dinâmicas estão a produzir. Sabemos também que neste quadro as mulheres, são especialmente atingidas. Elas perdem as suas machambas, os campos onde colhem as plantas com que fazem medicamentos, elas perdem as suas casas e as suas redes de apoio e vizinhança, elas perdem a sua autoridade construída e legitimada nas suas comunidades através dos seus conhecimentos ou estatuto construídos à custa da sua idade, da sua posição e função nas famílias. Desenraizadas e despossuídas de muitos dos seus recursos materiais e simbólicos elas sentem, particularmente, o peso da perda da sua dignidade e dos seus modos de se representarem enquanto mulheres. Afastadas dos seus territórios e das tecnologias que dominam para produzir alimentos ou resolver conflitos, elas ficam em uma posição de extrema vulnerabilidade. Mesmo em sociedades de tradição matrilinear, como as sociedades Emakua do Norte do país, a desestruturação tem atingido drasticamente o poder das mulheres. Cada vez mais elas estão sub-representadas ou mesmo ausentes da tomada de decisão no que respeita à expropriação da terra e das condições de indemnização. Para gerar algum rendimento, elas são empurradas para actividades informais arriscadas como a mineração artesanal que substitui a produção agrícola que costumava ser a sua forma de organizar a sua vida e a vida da família. A dificuldade de acesso a água limpa ou potável ou a terras aráveis por efeito das desapropriações e deslocação dos seus territórios de origem para outros com condições mais severas também contribui para o empobrecimento e para a degradação da sua posição no seio das suas comunidades familiares. Associado a isto está o aumento dos riscos de ataques de carácter sexual por terem de percorrer caminhos afastados das suas habitações e que mal conhecem.
Estes impactos recaem desproporcionalmente sobre as mulheres camponesas responsáveis por 60 a 80% da produção de alimentos na África ao Sul do Sahara a quem competem também as actividades quotidianas da economia do cuidado, da casa, família e comunidade. O trabalho diário das camponesas acontece em solos, fontes de água e ar cada vez mais poluídos tendo isso muitos efeitos negativos na sua saúde e na saúde das suas crianças. As mulheres, tanto as camponesas como as operárias são, assim, as que carregam os principais custos e fardo deste modelo de desenvolvimento extractivista na medida em que são as principais produtoras e fornecedoras de comida, são as que buscam e carregam a água e colectam combustível; são as cuidadoras dos mineiros e mineiras e de trabalhadoras/es que operam nas indústrias relacionadas, cabendo-lhes de acordo com a divisão de trabalho, cuidar dos membros doentes da família e comunidade. Em condições de vida precárias, com todos estes trabalhos que desempenham diária e ininterruptamente, as mulheres estão a subsidiar as empresas multinacionais e a libertar o Estado das suas obrigações de cuidar das/dos suas/seus cidadãs/ãos. Ora, o capitalismo extractivista contemporâneo sabe o quanto todo este panorama de trabalho não pago e de vulnerabilidade das mulheres, é uma das condições da sua capacidade de acumulação e concentração de riqueza.
Mas elas não assistem paralisadas a estas desventuras, pelo contrário. No próximo artigo, começamos a desvendar, com elas, as suas estratégias e as alternativas de vida que estão a levar a cabo no seu país e na região da África austral.
Teresa Cunha - Nascida no Huambo em Angola é doutorada em Sociologia pela Universidade de Coimbra. É investigadora sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra onde ensina em vários Cursos de Doutoramento; co-coordena o Núcleo de Humanidades, Migrações e Estudos para a Paz (NHUMEP), os ciclos do Gender Workshop e Oficinas das Epistemologias do Sul e o Programa de Investigação Epistemologias do Sul. É investigadora associada do CODESRIA e do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique. Em 2017 , foi agraciada com a Ordem de Timor-Leste pelo Presidente da República Democrática de Timor-Leste. Os seus interesses de investigação são feminismos e pós-colonialismos; mulheres transição pós- bélica, paz e memórias; outras economias e economias feministas; direitos humanos. Tem publicados vários livros e artigos científicos em diversos países e línguas dos quais se destacam: Women InPower Women. Outras Economias criadas e lideradas por mulheres do sul não-imperial; Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismos, Moçambique e Timor- Leste; Ensaios pela Democracia. Justiça, dignidade e bem-viver; Elas no Sul e no Norte; Vozes das Mulheres de Timor; Timor-Leste: Crónica da Observação da Coragem; Feto Timor Nain Hitu - Sete Mulheres de Timor»; Andar Por Outros Caminhos e Raízes da ParticipAcção.