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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
As bibliotecas coloniais e o privilégio de omitir o poder. Vale a pena ir além da bibliometria?
AN Original - Alice Comenta
2019-07-23
Por Sara Araújo

No momento de publicação deste artigo terão passado três semanas do encerramento da quinta edição da Escola de Verão das Epistemologias do Sul. Este curso é parte de uma oferta de formação de curta duração disponibilizada pelo CES. Desde 2014, anualmente, promovemos um espaço de encontro entre geografias, saberes e percursos heterogéneos na academia e/ou no ativismo. O encontro extravasa o registo científico convencional e funciona como laboratório social ativo onde se experimenta a ecologia de saberes. Palestras, oficinas de arte e metodologias, concertos, passeios, saraus de poesia, discussão de filmes, espaços de trabalho e, igualmente importante, tempos de convívio vão aproximando participantes e formadores/as ao longo de nove dias. As emoções não estão ausentes e temos preferido o custo e o caos do uso de três línguas à exclusão de quem não domina a língua hegemónica. A escola faz-se de gestos solidários e aprendizagens recíprocas que permitem fortalecer o nosso contributo para as lutas sociais e sustentam a convicção de que vale a pena a aposta, ainda que contra a obsessão bibliométrica, que, combinada com precariedade científica e uma lógica individualista que contamina todos os lugares, atormenta as universidades e os centros de investigação e, humanize-se o argumento, os/as investigadores/as que fazem andar essas instituições. 

O projeto Alice, que deu origem a esta escola de verão e encerrou formalmente em 2016, propunha que a Europa aprendesse com o Sul, invertendo a trajetória colonial de circulação do saber e desafiando as linhas com que se cose o cânone eurocêntrico. Tinha com subtítulo “espelhos estranhos, lições imprevistas” e é com a metáfora dos espelhos que nos refletem e com que vemos o mundo que continuo a reflexão. Vem a propósito da transição entre os dias passados com quem faz da vida um lugar de luta contra as opressões coloniais, capitalistas e sexistas e a discussão pública em Portugal em torno do racismo, que desaguou num debate sobre hierarquia entre culturas, que imaginava extinto entre gente de bom senso, ou seja, entre pessoas que, mesmo não percebendo as continuidades coloniais no presente, reconhecem que o colonialismo não devia ter acontecido. Estamos em 2019 e há ainda quem considere legítimo discutir hierarquias culturais sem falar da história das relações de poder e de violência. O despudor de alguma opinião que ocupa lugares privilegiados no espaço público, ao exibir com arrogância o saber construído entre as paredes das bibliotecas coloniais, intocado pela filosofia de outros lugares e pelo som do que vai pelas ruas, não para de me espantar. Quase sempre brancos, quase sempre homens ocupam privilégios como se fossem conquistas e isso reflete-se na forma como mostram o mundo e consequentemente como a opinião publica o vê. Outros espelhos são precisos.  

Os espelhos distorcem. A imagem que temos de nós e do mundo varia em função do tipo de distorção produzida e de quem cabe nos reflexos. No projeto Alice, e de um modo geral no trabalho do diretor do projeto, Boaventura de Sousa Santos, os espelhos, como os mapas, constituem uma metáfora que convida a observar o mundo a partir de diferentes perspetivas. Conhecer mais sobre outros lugares inclui o que é geograficamente próximo, mas escapa às regras impostas por quem tem poder para as impor. Os espelhos estranhos permitem saber mais da nossa sociedade, identificar limites do nosso conhecimento e perceber as invisibilidades produzidas pelos instrumentos conceptuais e metodológicos de que dispomos. São uma proposta de alargamento de perspetivas a partir de lugares quase sempre classificados como inferiores, com o horizonte de irmos além das leituras de horário nobre, mas incapazes de sustentarem alternativas reais.

O exercício de nos vermos a um espelho estranho é complexo. Olhos eurocêntricos observam o mundo por defeito, identificando o que foge às regras da modernidade eurocêntrica como atraso ou ignorância. Inábeis para perceberem o reflexo dos seus limites, sobrepõem diferença e inferioridade. É isso que permite produzir observações como a de que há culturas superiores a outras. Aos olhos de quem? De acordo com que critérios de valor e rigor? Porque valem mais esses critérios? Sem tocarmos estas questões, a discussão é desonesta ou ignorante. Não se trata de defender o relativismo, mas de colocar a questão do poder em cima da mesa e não permitir que apenas um dos lados defina que cartas é que contam como trunfo. Também não defendo apenas a tolerância, que convive sem contaminações, mas a possibilidade de vermos, ouvirmos e sentirmos para além dos limites impostos por uma cultura que é local por mais que reivindique que vale para qualquer lugar.

Para quem foi formado numa cultura eurocêntrica, o exercício de desaprender o cânone e provincializar o alegado conhecimento universal, que afinal é só europeu, exige alguma prática. Não se trata de desprezar a cultura ou o conhecimento produzido na Europa, mas de ser capaz de lhe perceber as ausências e as possibilidades de enriquecimento a partir de outros lugares, culturas, saberes. Volto agora à Escola de Verão. O exercício de passar mais de uma semana com quem carrega outros percursos e outras experiências de luta permite-me aprender o que não cabe nos livros, porque extravasa os limites da razão fria. O capitalismo, o colonialismo e o patriarcado souberam dividir para reinar, encobrindo as estruturas opressivas que insistem em pressionar-nos para ocuparmos o lugar que nos foi destinado com narrativas de liberdade e possibilidades de sucesso, reiteradamente assentes nos indivíduos. Foi ao espelho de outros lugares, por exemplo, de outras mulheres e outras narrativas de luta e sucesso que identifiquei pela primeira vez a violência do individualismo contido nos discursos liberais do feminismo. Desengane-se quem acredita que só as mulheres do sul têm a aprender com as do norte.

O sucesso da escola de verão deve-se, em grande medida, às candidatas e aos candidatos que atrai, gente que recusa sentar-se a ver a opressão passar e, na universidade ou na rua, procura conhecer para transformar, construindo, à revelia das caixas disciplinares, extravasando os limites impostos pela razão científica e usando combinações de conhecimentos improváveis, saberes relevantes para as lutas sociais. As lutas que quase nunca contam têm lugar de destaque e, mais importante do que estudar o que se vê, é identificar quem estamos a invisibilizar. E não somos poupados/as. Os/as participantes querem ali mais pessoas negras, mais pessoas ciganas, mais mulheres em posições de destaque. Nós também. Na escola vemo-nos ao espelho um/as dos/as outros/as, identificamos mutuamente as ausências que produzimos e fortalecemo-nos coletivamente.

É fácil hostilizar estes lugares e o saber que é produzido nestes termos, obrigando quem acredita na possibilidade de outro mundo à extenuante tarefa de ter que se defender numa linguagem canónica que é demasiado limitada. Por isso são tão importantes os lugares de afeto onde é possível quebrar as correntes bibliométricas e o provincianismo de quem recusa aprender a linguagem de mais que um lugar. Um provérbio africano citado com frequência nos estudos pós-coloniais diz que “enquanto os leões não tiverem os seus próprios historiadores, a história da caça continuará a glorificar os caçadores”. Percebemos hoje que até o provérbio invisibiliza o papel da leoa, a caçadora. O privilégio masculino e branco é forte, mas a luta está a fazer-se e progressos acontecem pela mão de quem exercita a coragem de não abdicar das versões alternativas e luta para superar as linhas abissais que separam o mundo que conta daquele que não cabe nos espelhos modernos. 


Sara Araújo doutorou-se em sociologia do direito pela Universidade de Coimbra, com uma tese sobre pluralismo jurídico e Epistemologias do Sul. Fez parte da equipa de coordenação do Projeto Alice – Espelhos Estranhos Lições Imprevistas (B. S. Santos ERC Advanced Grant), hoje transformado em Programa de Investigação em Epistemologias do Sul. Pertenceu ao Observatório Permanente da Justiça (2003-2005), mantendo ainda ligações de colaboração, nomeadamente no âmbito de atividades de investigação e formação (UNIFOJ). Integrou a equipa binacional para a reforma da justiça em Moçambique (2003-2004), foi membro da equipa de investigadores/as do Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Moçambique (2005-2006) e investigadora associada do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (2008-2010). Participou recentemente na realização de um Estudo Diagnóstico da Justiça em Timor-Leste e é atualmente investigadora do projeto europeu ETHOS - Towards a European THeory Of juStice and fairness. É cocoordenadora da Escola de Verão das Epistemologias do Sul. Publicou capítulos e artigos científicos sobre pluralismo jurídico em Moçambique e em Timor-Leste, Epistemologias do Sul e descolonização do Estado e do direito. Organizou um elevado número de eventos científicos e, enquanto parte dos desafios lançados pelas Epistemologias do Sul, concebeu e organizou múltiplas atividades que combinam ciência, arte e conhecimentos nascidos nas lutas sociais (concertos, conferências-concerto, palcos de ecologia de saberes, performances, exposições, oficinas da UPMS, fóruns, tendas Paulo Freire, entre outros). Em 2008, recebeu o prémio Agostinho da Silva, atribuído pela Academia de Ciências de Lisboa.