O título desta breve reflexão é também o tema dum evento tão importante como criativo e atual. Trata-se de uma oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), uma iniciativa da sociedade civil, que se dispõe a debater um tema de relevo, com esperado impacto positivo no mundo em que vivemos. Neste caso, a oficina terá lugar em Lisboa, para além de ser apenas a segunda ocorrência no país, Portugal é historicamente muito importante para a UPMS. De facto, a plataforma foi desenvolvida com uma grande contribuição do sociólogo Boaventura de Sousa Santos que ajudou a definir os princípios teóricos e a metodologia, incorporando e fortalecendo também as diretrizes de educação popular propostas pelo pedagogo brasileiro Paulo Freire. A UPMS surgiu no contexto internacional do Foro Social Mundial na década de 2000, tendo realizado oficinas em vários países do Mundo, regressando agora a Portugal, depois da oficina em Leiria, em 2013.
O objetivo das oficinas da UPMS é de favorecer o intercâmbio de saberes nascidos na luta contra a opressão social, em prol duma “ecologia de saberes” que permita a construção de uma interculturalidade crítica. É favorecida, assim, uma abordagem interseccional, pondo em diálogo movimentos que lutam contra diferentes formas de opressão; tanto racial (afrodescendentes e ciganas), como de género (feminismos), de orientação sexual (LGBTQ+) e económicas (ecologistas, movimentos operários, comunidades rurais, e movimentos que desenvolvem outros modelos de economia), como também intelectuais que investigam estes assuntos em diversas áreas disciplinares do saber. Nas oficinas da UPMS a diversidade é um valor central considerado criador para a mudança necessária para um mundo mais justo.
Qual a razão de organizar uma oficina da UPMS em Lisboa, no momento histórico que vivemos? É preciso considerar que as oficinas incluem participantes de vários países que permitem expandir o debate além das questões meramente nacionais, a oficina de Lisboa não será exceção. O evento é organizado em proximidade à conferência internacional da Associação de Afro-Europeus/as com o titulo “Invisibilidades Negras Contestadas” que reunirá também em Lisboa activistas, artistas e pessoas de varios movimentos, organizações e academias europeias e mundiais. Contudo, o foco do debate não pode escapar à grande discussão sobre a história, o valor da memória, o legado colonial e a importância do património, que nos últimos anos se intensificou em Portugal. Tem a ver com a presença negra e cigana que desde séculos faz parte do património artístico e que muito lentamente tem entrado nas iniciativas institucionais, como na polémica sobre justiça social. Não apenas os meios de comunicação social têm vindo a enfrentar o tema com crescente interesse, mas também o meio académico tem focado estes temas através de investigações que procuram conhecer o passado assim como compreender a sociedade e a política atual. Este interesse crescente é devido à forma imprescindível das lutas que os movimentos sociais antirracistas têm vindo a desenvolver. Trata-se de movimentos que lutam contra o racismo institucional (contras pessoas negras ou ciganas) e contra outras formas de discriminação – como aquelas xenofónicas, económicas, de género e sexual – que são estruturantes na sociedade moderna, não só na portuguesa, mas fortemente nesta.
A partir da necessidade de ampliar o conhecimento mútuo entre movimentos sociais, e também entre eles e sectores da academia engajados com estes temas, foi formada uma equipa organizadora, cujos membros dirigem movimentos sociais ou estudam questões ligadas ao “Memória, Patrimônio, Colonialismo e Anti-Racismo” na academia. Não há uma divisão estrita entre ativistas e pessoas da academia, porque como acontece várias vezes, as mesmas pessoas fazem parte dos dois ambientes. A equipa organizadora inclui a DJASS - Associação de Afrodescendentes, o INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal, a IC - Iniciativa Cigana e os projectos de investigação ECHOES - European Colonial Heritage Modalities in Entangled Cities, MEMOIRS - Filhos de Império e Pós-memórias Europeias e COMBAT - O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação antidiscriminação; sendo, três dos projectos do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. O processo organizativo è marcado pela imprescindivel horizontalidade decisional e da sinergia preciosa na costrução de programas sociais alternativos.
Normalmente as oficinas UPMS costumam ter a duração de dois ou três dias, com carácter residencial e podem ter uma assistência até 50 pessoas mas a oficina UPMS de Lisboa terá uma assistência expectável de 35 a 40 pessoas e ocorrerá apenas num dia. È sempre privilegiada a dimensão dialógica adequando o número de participantes ao trabalho em grupo, assegurando, assim, o espaço de fala para todas/os. De facto as orientações metodológicas definem claramente que as oficinas “devem potencializar uma troca de saberes alternando períodos de discussão, períodos de estudo e de reflexão e períodos de lazer”. Uma das ideias principais dos métodos usados é o de ultrapassar a centralidade da razão científica para permitir que o conhecimento emancipatório possa emergir, pondo em diálogo a própria razão com outras formas de saber; como o sentido estético e aquele produzido pelas experiências de vida das pessoas que enfrentam oppressão, violência, resistindo resilientemente no dia-a dia. A dimensão de convívio da UPMS não é marginal mas central e permite às pessoas participantes – assim como aos movimentos e organizações que integram – de alcançar uma maior proximidade interpessoal e facilitar a troca de “saberes nascidos na luta”. No meio da heterogeneidade de interesses, de lutas sociais, são procurados, principalmente, os pontos que as unem / os pontos em comum. Assim são pensadas formas criativas de intensificar as lutas colectivamente.
As oficinas da UPMS são, portanto, eventos fechados, não abertos ao público, isto permite que as pessoas participantes possam criar um clima de confiança e de partilha. Na Carta de Princípios lê-se que a UPMS é “uma iniciativa de auto-educação para a dignidade e a emancipação social. Pretende ser um espaço de formação política intercultural que promove o interconhecimento e a auto-educação”. Não se trata, portanto, duma atividade de educação convencional e ainda menos dum evento académico. As pessoas que participam são por larga maioria (dois terços) ativistas de movimentos sociais, de organizações comunitárias ou de organizações non-governamentais. “A UPMS constitui um espaço aberto para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de ideias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos sociais locais, nacionais e globais que se opõem ao domínio do mundo pelo capitalismo, pelo colonialismo, pelo racismo e pelo patriarcado, contra o sofrimento humano causado pelas injustiças, exclusões, discriminações, dominações, opressões que deles decorrem.”
Cristiano Gianolla studied Computer Science, Philosophy (BA), Political Philosophy (MA), Human Rights and Democratisation (E.MA), Sociology and Political Science (PhD) in Italy, Germany and Portugal. His main fields of expertise are democratic theories and their intersections with the metaphorical South, intercultural dialogue, cosmopolitanism and post-colonialism. He worked in the Information and Communication Technology field as well as for Non-Governmental Organisations, International Institutions and in Academia in various countries. Between 2011 and 2017, he has been a junior researcher at the Centre for Social Studies of the University of Coimbra, Portugal and he integrated the ALICE Project (ERC). Since 2017 he is a researcher in the same institution where he currently integrates the ECHOES project (Horizon 2020). He authored two books and a number of scientific articles.