Married Love (1918), de Marie Carmichael Stopes (1880-1958)i, é uma narrativa com evidentes objetivos pedagógicos que visa reeducar o comportamento sexual entre o homem e a mulher no início do século XX. As considerações de Stopes sobre a relação entre homem e mulher, consideradas transgressoras pelo poder institucional da sua época, focam-se em tornar visível a sexualidade feminina, apelando ao desenvolvimento da educação sexual, como algo indispensável para uma verdadeira união matrimonial do casal heterossexual.
Tendo como ponto de partida o século XVII, foi com o filósofo Francis Bacon (1561-1626) que se criou uma nova maneira de estudar factos naturais a partir do método científico e empírico.Desde então, e até ao século XIX, a estatísticaii desenvolveu-se, traduzindo a realidade social em números e, segundo Karma Lochrie, estes números eram associados a factos sociais, os quais vieram a ser articulados na linguagem das normas, nas curvas gráficas, nas distribuições lógicas e no homem comum; a sociedade tornou-se estatística. A estatística tornou-se numa ferramenta indispensável para a definição e a valorização da norma, tendo em conta que a norma se fundamentava a partir das suas variações, que viabilizam o desvio.
Em Married Love, a autora reporta-se à estatística do século XIX, desvendando a forma como se normalizam as práticas sexuais, onde claramente é atribuído à mulher um lugar passivo e subvalorizado. Stopes faz o seguinte comentário acerca da ignorância vigente em torno do tema em discussão: “Tornou-se uma tradição na nossa vida social que a ignorância da mulher sobre o seu próprio corpo e o corpo do seu futuro marido é uma inocência semelhante a uma flor.” (p.33, tradução minha). Esta lacuna no conhecimento humano é uma das consequências das convenções normativas, que na época faziam da sexologia um assunto tabu. A normalização da relação entre o homem e a mulher investe na negação do prazer/desejo feminino, criando-se um modelo de mulher, que menospreza os seus impulsos sexuais. O próprio discurso científico implementa na sociedade a ideia de que, são apenas as mulheres depravadas que têm tais sentimentos (p. 37). Contrariando a heteronormatividade, Stopes apresenta uma lei estatística, à qual chama “A Lei da Periodicidade da Recorrência do Desejo da Mulher” (p. 39, tradução minha). Esta lei contesta as teorias desenvolvidas pela sexologia da época. Através de uma linha curva, a autora representa graficamente as flutuações do desejo sexual da mulher. Stopes, ao relatar que a mulher padronizada pela sociedade moderna, na maioria das vezes, só conhece a existência do ato sexual após o matrimónio, sublinha o seguinte: “(…) o lado social, intelectual e espiritual na escolha do amor tem vindo a mascarar a fisiologia básica da sexualidade feminina.” (p. 39, tradução minha) A autora debruça-se sobre a análise dos impulsos sexuais das mulheres que, ora estão separadas dos seus maridos, ora os homens passam muito tempo fora e afastados da mulher.
Durante este período de ausência da presença masculina, Stopes reflete sobre a relação entre as flutuações do desejo sexual feminino e o período de tempo, antes e depois, da menstruação da mulher. Os resultados da investigação de Stopes desafiaram o discurso normativo da época ao deduzir uma nova generalização acerca de um assunto considerado tabu, revelando uma nova perspetiva quanto à sexualidade feminina, esclarecedora e, potencialmente, de grande valor médico e sociológico (p. 40). A autora deixa claro que a ciência normativa insistia num diagrama de curva singular, que caracterizava a variabilidade das capacidades da mulher durante o seu ciclo menstrual. As generalizações de Stopes sobre a vitalidade sexual da mulher, vêm mostrar como essa curva singular e cíclica, constantemente reproduzida pela heteronormatividade, não corresponde ao real caráter sexual feminino. A autora, apresenta as variações que podem ocorrer durante o ciclo menstrual, revelando a falta de rigor da norma vigente. Afinal, existem numerosas circunstâncias que podem condicionar as flutuações dos desejos sexuais da mulher, dependendo da sua vitalidade e predisposição sexual, tal como do seu estado físico no momento. A autora defende, portanto, a instrução sexual entre casais e estipula um novo lugar para as mulheres nesse contexto. Estabelece-se a visibilidade da sexualidade feminina, desvelando as convenções impostas ao sexo feminino, que o reduzia a mero objeto passivo, em oposição ao caráter ativo associado ao sexo masculino.
Stopes pôs em evidência a realidade da normalização dos padrões das práticas sexuais dentro da heterossexualidade, os quais estavam institucionalizados em conformidade com as normas da sua época. À primeira vista, as recomendações são dirigidas ao casal heterossexual, mas torna-se óbvio que as recomendações são destinadas sobretudo ao homem, sobressaindo assim, o caráter feminista da autora. A estatística revolucionou a forma como era pensada a realidade humana, tendo como resultado o desenvolvimento do conceito de norma, um ideal coletivo calculado a partir de uma média. No momento em que se traduzem práticas sexuais em representações estatísticas, os seus resultados validam a normalidade, proporcionando na cultura ocidental novas interpretações ligadas à sexologia e normalizando práticas sexuais, privilegiando umas em relação a outras. Manuais de casamento, como Married Love, reforçam esta ideia da normalização da sexualidade, reeducando as práticas dentro do casamento heterossexual. Ao instituir um novo paradigma da sexualidade humana, reformulam-se as normas convencionais das práticas sexuais de um específico grupo social, contribuindo para a propagação da hegemonia. As outras sexualidades consideradas práticas fora-de-lei na sociedade ocidental, como por exemplo, a homossexualidade, são excluídas desta matriz sexual.
Torna-se notório que a heterossexualidade, apesar de estimar um conjunto de práticas ou preferências sexuais partilhadas por um grupo socialmente definido, cria dentro de si as suas próprias conceções sobre o que é e não é considerado socialmente aceitável. A construção de uma heterossexualidade normativa viabiliza o desvio associado, por exemplo, à homossexualidade, como se a vida de cada indivíduo se definisse consoante a sua sexualidade ou orientação sexual. A obra de Marie Stopes, apesar de ser uma narrativa essencialmente centrada no encorajamento do prazer no ato sexual da mulher, torna oportuna a discussão em torno da construção social do sexo e da sexualidade. Caracterizando os ideais do prazer e do desejo, como fez a autora em Married Love, constrói-se uma identidade sexual, ou seja, o indivíduo é definido consoante a norma social e as variações que ela possa apresentar e, portanto, reforçando a ideia da heteronormatividade. Em vez, ao entrar em rutura com as categorizações sociais do sexo e da sexualidade humana, o discurso feminista deverá insistir que a sociedade ocidental, ainda predominantemente heterossexista e patriarcal, necessita de criar espaço para a diversidade e investir na mobilização para a mudança desse paradigma.
Jorge Correia Orfão é Doutorando em Discursos: Cultura, História e Sociedade no CES.
iStopes, Marie (2004). Married Love. Oxford: Oxford World’s Classics/Oxford University Press. (Primeira publicação em 1918).
iiLochrie, Karma (2005). “Have We Ever Been Normal?” in: Heterosyncracies: Female Sexuality When Normal Wasn’t. Minneapolis/Londres: Minnesota Press. (pp. 5-6).