pt
Reflexão
Original
Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
Anti-Heteropatriarcado
Quinze teses sobre o partido-movimento
AN Original - Alice Comenta
2021-06-17
Por Boaventura de Sousa Santos

Este artigo faz parte da série Alice Comenta, da autoria da equipa do Programa de Investigação alice-Epistemologias do Sul, publicada no Alice News com cadência semanal.


ACCEDA A LA VERSIÓN EN ESPAÑOL AQUÍ

1. Não há cidadãos despolitizados; há cidadãos que não se deixam politizar pelas formas dominantes de politização, sejam elas partidos ou movimentos da sociedade civil organizada.

Os cidadãos e as cidadãs não estão fartos da política, mas sim desta política; a esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza politicamente nem sai à rua para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e simpatiza com quem se manifesta; em geral, não tem condições para aderir a partidos ou participar em movimentos ou interesse em o fazer, mas quando vem para a rua só surpreende as elites políticas que perderam o contacto com “as bases”.

2. Não há democracia sem partidos, mas há partidos sem democracia.

Uma das antinomias da democracia liberal do nosso tempo reside em ela assentar cada vez mais nos partidos como forma exclusiva de agência política, ao mesmo tempo que os partidos são internamente cada vez menos democráticos. Tal como a democracia liberal, a forma partido-tradicional esgotou o seu tempo histórico. Os sistemas políticos democráticos do futuro têm de combinar a democracia representativa com a democracia participativa a todos os níveis de governação. A participação cidadã tem de ser multiforme e multicanais. Os próprios partidos devem ser internamente constituídos por mecanismos de democracia participativa.

3. Ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida e, portanto, prova-se nos factos.

A esquerda tem de voltar às suas origens, aos grupos sociais excluídos, que ela esqueceu há muito tempo. A esquerda deixou de falar ou de saber falar com as periferias, com os mais excluídos. Quem fala hoje com as periferias e com os mais excluídos são as igrejas evangélicas pentecostais ou os agitadores fascistas. Hoje, o activismo de esquerda parece limitar-se a participar numa reunião do partido para fazer (quase sempre ouvir quem faz) uma análise de conjuntura. Os partidos de esquerda, tal como existem hoje, não são capazes de falar com as vozes silenciadas das periferias em termos que estas entendam. Para mudar isso, a esquerda, ou melhor, as esquerdas devem ser reinventadas.

4. Não há democracia, há democratização.

A responsabilidade da esquerda reside em que só ela serve genuinamente a democracia. Não a limita ao espaço-tempo da cidadania (democracia liberal). Pelo contrário, luta por ela no espaço da família, da comunidade, da produção, das relações sociais, da escola, das relações com a natureza e das relações internacionais. Cada espaço-tempo convoca um tipo específico de democracia. Só democratizando todos os espaços-tempo é que se consegue democratizar o espaço-tempo da cidadania e da democracia liberal representativa.  

5. O partido-movimento é o partido que contém em si o seu contrário.

Para ser um pilar fundamental da democracia representativa, o partido-movimento deve ser construído por processos não representativos, mas sim, participativos e deliberativos. Nisto consiste a passagem da forma partido-tradicional para a forma partido-movimento. Consiste em aplicar à vida interna dos partidos a mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa/deliberativa e democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em geral. A participação/deliberação respeita a todos os domínios do partido-movimento, da organização interna à definição do programa político, da escolha de candidatos às eleições à aprovação de linhas de acção na conjuntura.

6. Ser membro da classe política é algo sempre transitório.

Tal qualidade não permite que se ganhe mais do que o salário médio do país; os membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de ter rostos, mas não é feita de rostos; o ideal é que haja mandatos colectivos que permitam a rotação regular de representantes durante a mesma legislatura; a transparência e a prestação de contas têm de ser totais; o partido é um serviço dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser financiado por estes e não por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar a democracia.

7. O partido-movimento é uma contra-corrente contra dois fundamentalismos.

Os partidos convencionais sofrem de um fundamentalismo anti-movimento social. Consideram que têm o monopólio da representação política e que esse monopólio é legítimo, precisamente porque os movimentos sociais não são representativos. Por sua vez, os movimentos sofrem de um fundamentalismo anti-partido. Consideram que qualquer colaboração ou articulação com os partidos compromete a sua autonomia e diversidade e acaba sempre em tentativa de cooptação.
Enquanto a democracia representativa estiver monopolizada por partidos anti-movimento e a democracia participativa por movimentos sociais, ou associações de bairros anti-partido, não será possível qualquer articulação entre democracia representativa e participativa com prejuízo para ambas. É preciso vencer esses dois fundamentalismos.

8. O partido-movimento combina a acção institucional com a acção extra-institucional.

Os partidos tradicionais privilegiam a acção institucional, dentro dos quadros legais e com mobilização das instituições, tais como, o parlamento, os tribunais, a administração pública. Pelo contrário, os movimentos sociais, embora utilizem também a acção institucional, recorrem muitas vezes à acção directa, aos protestos e manifestações nas ruas e nas praças, aos sit-ins, à divulgação de agendas por via da arte (o artivismo). Em face disto, a complementaridade não é fácil e tem de ser pacientemente construída.
Não podemos generalizar as condições de acção colectiva: há condições políticas em que as classes que estão no poder são muito repressivas, muito monolíticas; há outras em que são mais abertas, menos monolíticas, e há muita competição entre elas. Quanto mais competição entre elites, mais brechas se abrem para que por elas entrem o movimento popular e a democracia participativa. O importante é identificar as oportunidades e não as desperdiçar. São muitas vezes desperdiçadas por razões de sectarismos, dogmatismos, carreirismos.
A prática dos movimentos tem frequentemente de oscilar entre o legal e o ilegal. Em alguns contextos, a criminalização da contestação social está a reduzir a possibilidade tanto da luta institucional como da luta extra-institucional legal. Nesses contextos, a acção colectiva pacífica pode ter de enfrentar as consequências da ilegalidade. Sabemos que classes dominantes sempre usaram a legalidade e a ilegalidade segundo as suas conveniências. Não ser classe dominante reside precisamente em ter de contar com as consequências da dialéctica entre legalidade e ilegalidade e proteger-se na medida do possível.

9. A revolução da informação electrónica e as redes sociais não constituem, em si, um instrumento incondicionalmente favorável ao desenvolvimento da democracia participativa.

Pelo contrário, podem contribuir para manipular a tal ponto a opinião pública que o processo democrático pode ser fatalmente desfigurado. O exercício da democracia participativa necessita hoje, mais do que nunca, de reuniões presenciais e discussões face a face. A tradição das células partidárias, dos círculos de cidadãos, dos círculos de cultura, das comunidades eclesiais de base tem de ser reinventada. Não há democracia participativa sem interacção de proximidade.

10. O partido-movimento assenta na pluralidade despolarizada e no reconhecimento das competências específicas.
A pluralidade despolarizada é aquela que permite distinguir entre o que separa e o que une as organizações e promover as articulações entre estas com base no que as une, sem perder a identidade do que as separa. O que as separa apenas fica em suspenso por razões pragmáticas.

O partido-movimento tem de saber combinar questões generalistas com questões sectoriais. Os partidos tendem a homogeneizar as suas bases sociais e a centrar-se nas questões que as abrangem a todas ou a largos sectores delas. Pelo contrário, os movimentos sociais tendem a concentrar-se em temas mais específicos, tais como, o direito à habitação, a imigração, a violência policial, a diversidade cultural, a diferença sexual, o território, a economia popular, etc. Trabalham com linguagens e conceitos distintos dos que são usados pelos partidos.
Os partidos podem sustentar uma agenda política com mais permanência que os movimentos. O problema de muitos movimentos sociais reside na natureza da sua irrupção social e mediática. Em determinado momento têm uma actividade enorme, estão todos os dias na imprensa, e no mês seguinte já estão ausentes ou entram em refluxo com as pessoas a deixarem de ir às reuniões ou às assembleias. A sustentabilidade da mobilização é um problema muito sério porque, para que se consiga uma certa continuidade na participação política, é preciso haver articulação política mais ampla que envolva partidos. Por sua vez, os partidos estão sujeitos a transformar a continuidade da presença pública na condição para a sobrevivência de quadros burocráticos.

11. O partido-movimento prospera numa luta constante contra a inércia.

Podem gerar-se duas inércias: por um lado, a inércia e o refluxo dos movimentos sociais que não se conseguem multiplicar e densificar a luta e, por outro, os partidos que não mudam em nada as suas políticas ficam sujeitos à estagnação burocrática. Superar estas inércias é o maior desafio para a construção do partido-movimento.
Trabalhando com experiências concretas, nota-se que os partidos, ao ter vocação de poder, costumam lidar bem com a questão dos desequilíbrios dentro do espaço público. Mas porque competem pelo poder, não querem transformá-lo, querem tomá-lo. Os movimentos sociais, ao contrário, sabem que as formas de opressão tanto vêm do Estado, como de actores económicos e sociais muito fortes. Em algumas situações, a distinção entre a opressão pública e a opressão privada não é demasiado importante. Os sindicatos, por exemplo, têm uma experiência notável de luta contra actores privados: os patrões e as empresas. Tanto os movimentos sociais como os sindicatos estão hoje marcados por uma experiência muito negativa: os partidos de esquerda nunca descumpriram tanto as suas promessas eleitorais quando chegaram ao poder como ultimamente. Esse descumprimento faz com que a deslegitimação dos partidos seja cada vez maior em mais países. Essa perda do controle da agenda política somente pode ser recuperada por meio dos movimentos sociais enquanto articulados nos novos partidos-movimentos.

12. A educação política popular é a chave para sustentar o partido-movimento.

As diferenças entre partidos e movimentos são ultrapassáveis. Para isso é necessário promover o interconhecimento por via de novas formas de educação política popular: rodas de conversas, ecologias de saberes, oficinas da Universidade Popular dos Movimentos Sociais; discussão de possíveis práticas de articulação entre partidos e movimentos: orçamentos participativos, plebiscitos ou consultas populares, conselhos sociais ou de gestão de políticas públicas. Até agora as experiências são sobretudo de escala local. Há que desenvolver a complementaridade em nível nacional e global.

13. O partido-movimento vai para além da articulação entre partido e movimento social.

Depois de mais de quarenta anos de capitalismo neoliberal, de colonialismo e de patriarcado sempre renovados, de concentração escandalosa da riqueza e de destruição da natureza, as classes populares, o povo trabalhador, quando explode ou irrompe de indignação, tende a fazê-lo fora dos partidos e dos movimentos sociais. Uns e outros tendem a ficar surpreendidos e a ir atrás da mobilização. Para além de partidos e movimentos, há que contar com os movimentos espontâneos, com as presenças colectivas nas praças públicas. O partido-movimento tem de estar atento a estas irrupções e ser solidário com elas sem tentar dirigi-las ou cooptá-las.

14. Vivemos um período de lutas defensivas. Compete ao partido-movimento travá-las, não perdendo de vista as lutas ofensivas.

A ideologia de que não há alternativa ao capitalismo – que, de facto, é uma tríade: capitalismo, colonialismo (racismo) e patriarcado (sexismo) –acabou por ser interiorizada por muito do pensamento de esquerda. O neoliberalismo conseguiu combinar o fim supostamente tranquilo da história com a ideia da crise permanente (por exemplo, a crise financeira). Por esta razão, vivemos hoje sob o domínio do curto prazo. É preciso atender às suas exigências porque quem está com fome ou é vítima de violência doméstica não pode esperar pelo socialismo para comer ou ser libertada.
Mas não se pode perder de vista o debate civilizatório que põe a questão das lutas de médio prazo e ofensivas. A pandemia, ao mesmo tempo que tornou o curto prazo em urgência máxima, criou a oportunidade para pensar que há alternativas de vida e que se não queremos entrar num período de pandemia intermitente temos de atender aos avisos que a natureza nos está a dar. Se não alterarmos os nossos modos de produzir, de consumir e de viver, caminharemos para um inferno pandémico.

15. Só o partido-movimento pode defender a democracia liberal como ponto de partida e não como ponto de chegada.

Num momento em que os fascistas estão cada vez mais perto do poder, quando não estão já no poder, uma das lutas defensivas mais importantes é defender a democracia. A democracia liberal é de baixa intensidade porque é pouca. Aceita ser uma ilha relativamente democrática num arquipélago de despotismos sociais, económicos e culturais. Hoje em dia, a democracia liberal é boa como ponto de partida, mas não como ponto de chegada. O ponto de chegada é uma profunda articulação entre a democracia liberal, representativa e a democracia participativa, deliberativa. Neste momento de lutas defensivas é importante defender a democracia liberal, representativa para neutralizar os fascistas e para a partir dela radicalizar a democratização da sociedade e da política. Só o partido-movimento pode travar esta luta.


Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra, a 15 de Novembro de 1940. É Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973) e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também Global Legal Scholar da Universidade de Warwick e Professor Visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. É Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. De 2011 a 2016, dirigiu o projecto de investigação ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências o mundo, um projecto financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC), um dos mais prestigiados e competitivos financiamentos internacionais para a investigação científica de excelência em espaço europeu. Tem escrito e publicado extensivamente nas áreas de sociologia do direito, sociologia política, epistemologia, estudos pós-coloniais, e sobre os temas dos movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado, direitos humanos, com trabalho de campo realizado em Portugal, Brasil, Colômbia, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e Equador. Os seus trabalhos encontram-se traduzidos em espanhol, inglês, italiano, francês, alemão, chinês, romeno, dinamarquês e polaco.