Ficar em casa. A casa de quem?
Estou cruzando as avenidas principais de uma das maiores cidades da Itália – a maior do Sul da Itália e, com certeza, aquela que é mais conhecida por ser a cidade do barulho, dos gritos, das vozes de rua, das brigas e dos amores que se resolvem sempre publicamente em berros de praça (um povo de selvagens e primitivos sem controlo nem noção, diziam os viajantes do Norte da Europa que aqui chegavam no século XIX à procura de folclore e exotismo perto de casa).
Napoli hoje está deserta e calada, adormecida num silêncio irreal, suspensa no espaço e no tempo. É o terceiro dia da quarentena coletiva pelo Corona Vírus, o terceiro desde o decreto do governo que declara a Itália inteira “zona vermelha”.
“O que é que se está a passar por aí?” é a mensagem que recebo cada dia, em várias línguas, por parte de dezenas de pessoas. Não sou médica nem tenho nenhuma formação sobre saúde; ou que posso comentar é que o vírus foi, na minha opinião, também uma extraordinária ocasião de reflexão social, porque ele parece ter visibilizado – como a epidemia de cegueira do Saramago – os aspetos mais violentos e as contradições mais cruciais desta Europa Cronófaga - comedora dos seus próprios filhos e do seu próprio tempo.
A primeira resposta sobre o que acontece é: estamos a ficar em casa. É a única solução possível, por agora, para diminuir a difusão do vírus.
Pode parecer uma situação banal e comum para muitos de nós, mas em verdade é uma coisa absolutamente extraordinária que nos deixa espaço para imensas reflexões.
Muitos de nós estamos acostumados a trabalhar a partir de casa – situação mais ou menos comum para quem vive de trabalhos imateriais, intermitentes, intelectuais etc. Mas a verdade é que ninguém, nenhum cidadão europeu, estava preparado pela eventualidade de ser forçado, por lei, a ficar em casa: a liberdade de movimento é um privilégio completamente naturalizado da cidadania europeia.
Na atual situação legal, não se pode sair da própria localidade – nem apanhar aviões, comboios etc. – e só é possível andar pela rua comprovando necessidades primárias – ir comprar comida, cumprir necessidades de saúde, ou ir trabalhar. Exatamente, ir trabalhar: se as lojas fecham – com exceção dos supermercados e das farmácias – , as fábricas, as indústrias, os transportes das grandes multinacionais continuam abertos. “A produtividade não deve parar!” Dizem as organizações dos industriais, enquanto o governo continua com os apelos à responsabilidade coletiva de “escolher ficar em casa”.
Para alguns, escolher ficar em casa é um privilégio.
Para outros, trabalhadores autónomos, precários, sem documentos, intermitentes etc, ficar em casa – porque os próprios lugares de trabalho não são garantidos e fecharam – corresponde a ficar, simplesmente, sem salário e sem meios para sobreviver, sem nenhuma medida pública que ajude a ultrapassar esta situação.
Para outras, muitas de nós, ficar em casa significa ter de lidar com uma carga de trabalho doméstico enorme, quase impossível de quantificar: cuidar das crianças quando escolas, infantários etc. estão fechados, cuidar de idosxs quando não existem meios de externalização de uma parte deste trabalho, continuar a manter a casa vivível, a dispensa cheia apesar das restrições, cuidar de doentes que não podem mais ir aos hospitais – porque não são suficientemente graves, e então não são prioritários. É preciso entender isto: uma inteira Nação que fica em casa é possível unicamente através da exploração de uma enorme quantidade de trabalho não retribuído e feminizado: a quarentena é também uma questão de género.
Para muitas de nós – mulheres, filhas, pessoas LGBTQ+, não binárias etc. – ficar em casa não é – nunca foi – uma recomendação muito tranquilizante: quarentena, para muitas pessoas, significa exposição constante e intensificada à violência doméstica de vários tipos, contra a qual a possibilidade de sair de casa por algumas horas do dia – para ir à escola ou para o trabalho – representava uma via de escape. Porém, os centros anti-violência e as sedes das associações de apoio também estão fechadas por lei.
Para alguém, ficar em casa representa, simplesmente, uma utopia.
Há mais de 60.000 pessoas encarceradas em Itália, encurraladas em estruturas demasiado pequenas, velhas, não saudáveis, desumanas. O Coronavírus está a espalhar-se rapidamente e sem controlo entre os/as detidxs, enquanto que em muitas prisões explodem revoltas para pedir mais direitos que são imediatamente reprimidas pela força pública. Por fim, em Itália, há no mínimo 50.000 pessoas sem abrigo, muitas das quais são migrantes, requerentes de asilo, pessoas sem documentos. Os despejos previstos pela força pública não estão a ser interrompidos, apesar da emergência de saúde pública.
Também na emergência, para o Estado existem vidas que não valem a pena ser vividas.
Aquelxs de nós que se formaram nos movimentos sociais, nos espaços comunitários, nas ocupações e nos coletivos, sempre aprendemos que ninguém se salva sozinho nem sozinha, que só juntxs se sai das crises. Ainda assim, hoje tivemos que enfrentar a dificilíssima decisão – que já foi tomada, nos últimos dias, por parte das assembleias de grupos, associações, coletivo, espaços socias – de ter que fechar estes mesmos espaços. Para quem cresceu aprendendo que abrir novos espaços de sociabilidade corresponde à única resposta possível ao sofrimento social, ao isolamento, à violência de uma sociedade capitalista, patriarcal e colonialista, manter abertos os nossos espaços – no verão, no Natal, em todas as situações onde o resto do mundo para - sempre foi uma prioridade: porque estes espaços são pontos de referencia para xs moradorxs dos bairros populares, para as pessoas sozinhas, para as mulheres vítimas de violência. A mesmo escolha dolorosa foi aquela que teve que tomar – em todo o território nacional – o movimento feminista, de desistir da greve geral do dia 9 de março e depois de cancelar todas as manifestações do 8M (decisão ainda mais difícil, se pensamos que a Itália é um dos países da Europa com mais alta taxa de violência de género).
Se o feminismo nos ensinou que nenhuma deve ser deixada sozinha, como conseguimos aplicar isto hoje, quando pelo mesmo sentido de amor pela coletividade na sua inteireza temos que escolher ficar em casa e evitar o contato com outros seres humanos?
Carla Panico é doutoranda no Programa Doutoral em Pós-colonialismos e Cidadania Global. É mestre em História Contemporânea pela Università di Pisa, em Itália. Formou-se no âmbito do pós-colonialismo e do operaísmo italiano. Na sua tese de mestrado, utilizou as ferramentas destas perspetivas de pensamento crítico para reanalisar a «Questione Meridionale» de Antonio Gramsci. Os seus interesses de estudo estão relacionados com a produção dos Sul internos ao Norte global, principalmente em relação ao espaço euro-mediterrâneo contemporâneo, aos fenómenos migratórios e aos movimentos sociais que o atravessam. É militante nos movimentos italianos contra a crise económica desde o ciclo de lutas de 2008; é ativista contra as fronteiras e pelos feminismos interseccionais. Escreveu pelo jornal diário italiano «Il Manifesto»; colabora com o site de informação independente dinamopress.it e com o coletivo de investigação euronomade.info.
*Um agradecimento especial ao Dr. Miguel Monteiro pelos comentários e pela revisão do texto.