Este artigo faz parte de uma série de publicações da autoria da equipa de investigação do projeto DeOthering, publicada no Alice News com cadência mensal.
Os discursos europeus de contestação ao multiculturalismo e de rejeição do acolhimento de refugiados/as têm-se alimentado fortemente de imaginários coloniais e orientalistas em torno do homem muçulmano como misógino e potencial agressor sexual. A cobertura jornalística e os debates políticos em torno dos acontecimentos da Passagem de Ano de Colónia em 2015/16 expõem emblematicamente uma tendência atual para racializar a violência sexual perpetrada por imigrantes, sobretudo quando estes são originários de países de maioria muçulmana, tendência que permite que a violação se venha tornando num privilegiado marcador cultural de exclusão do Islão da “nação imaginada”.
A Alemanha é de facto uma sociedade fortemente marcada por situações de pânico moral em torno de crimes sexuais perpetrados por imigrantes, geradoras de uma crescente associação entre imigração e violência sexual. Iconografias e narrativas do reportório dos extremismos xenófobos têm vindo a ganhar espaço no debate político e entre o senso comum. As vozes de extrema-direita destacam-se simultaneamente como promotoras e beneficiárias desta evolução no debate político, num contexto em que o descrédito pelos meios de comunicação tradicionais é concomitante com a emergência de um terreno fértil para as teorias de conspiração, frequentemente alavancadas em narrativas de vitimização nacional, disseminadas através das redes sociais. É nesse sentido que valerá a pena olhar para as páginas Facebook da Alternative für Deutschland (AfD), o principal partido de extrema-direita do país, para melhor perceber como se processa a construção e disseminação de narrativas de pânico moral, de fake news e, de um modo geral, de discursos de ódio, racistas e xenófobos. Como é sabido, o discurso “anti-sistema” da AfD no contexto das chamadas “crise do euro” e “crise dos refugiados” (na prática, a contestação às políticas da Chanceler Merkel nestas questões) deu-lhe popularidade, abrindo-lhe caminho para a representação parlamentar. As páginas Facebook do partido dirigem-se assim a um eleitorado descrente dos partidos tradicionais e dos media convencionais. No entanto, enquanto partido com assento parlamentar, a comunicação da AfD tem de obedecer à constituição alemã. É neste sentido, como espaço de disseminação de ideias xenófobas dentro dos limites estabelecidos pela lei alemã sobre discurso de ódio, que as páginas da AfD no Facebook são uma fonte útil para perceber como a retórica extremista entra na comunicação social e influencia os debates atuais sobre migração.
Os cartazes virtuais de fundo azul com o logo da AfD no canto inferior direito, postados mensalmente na página nacional Facebook do partido com uma média mensal de 30 a 60, revelam o que este considera serem os pontos centrais do seu programa político e os valores em que aposta na comunicação com o seu eleitorado. Inseridos num sistema de transmissão de informação em três etapas, os cartazes são acompanhados por um breve texto de contextualização e pelo link para a fonte da informação em que a mensagem do cartaz se apoia (frequentemente um artigo de jornal).
No outono de 2015, numa altura em que a oposição aos empréstimos à Grécia começava a perder protagonismo na propaganda do partido a favor da crescente contestação ao acolhimento de refugiados/as, o partido criou a série de cartazes com o mote “Asylchaos & Eurocrise stoppen” [Acabar com o caos do asilo & a crise do euro”]. Desta série fazia parte o cartaz “Frauen werden zu Freiwild” [As mulheres tornam-se alvo] (12-10-2015), um cartaz que postula a existência de uma ameaça sexual às mulheres na Alemanha devido às políticas de asilo. A fonte para esta afirmação é o artigo do jornalista Phillip Woldin “Wie Frauen in Flüchtlingslagern zu Freiwild werden” [“Como as mulheres se tornam alvo nos centros de acolhimento”] (11.10.2015), publicado no jornal de centro-direita Die Welt, sobre os riscos de violência e assédio sexual que as mulheres refugiadas viviam em centros de acolhimento sobrelotados em Hamburgo. O jornalista destacava as propostas de alguns especialistas a favor da criação de alojamento separado para mulheres não acompanhadas como uma possível solução para o problema. Um texto sobre as ameaças sexuais às mulheres refugiadas na Alemanha está assim na origem de um cartaz da extrema-direita a denunciar os refugiados como uma ameaça sexual para as mulheres alemãs. A ponte entre a fonte com a mensagem subliminar “temos de proteger as mulheres refugiadas” e a mensagem do cartaz “temos de proteger as mulheres alemãs dos refugiados” é feita por um texto de 141 palavras que acompanha o cartaz. O texto argumenta que, em vez de discutir as condições deficitárias de alojamento dos refugiados, o debate político-mediático alemão deveria olhar a violência sexual entre refugiados como prova da incapacidade de estas pessoas se integrarem na cultura alemã, devendo assim exigir medidas para proteger as mulheres alemãs. Ao remeter para o artigo do jornal Die Welt, a AfD recorre aos media convencionais para dar credibilidade às suas afirmações; no entanto, ao mesmo tempo, o texto de 141 palavras desacredita a abordagem da fonte, assim participando na contestação aos valores e à credibilidade dos media convencionais. Ao reduzir a complexidade da abordagem levada a cabo no artigo do Die Welt, o texto-ponte socorre-se de um quadro de análise que contraria a abordagem do artigo do jornal: o que o artigo trata como questão de violência de género intensificada pelas condições logísticas do alojamento é re-significado pela AfD como violência gerada pela cultura de origem dos refugiados. Ora, uma vez que a atenção dos/as utilizadores/as do Facebook tende a ser atraída por imagens e textos curtos (uma parte significativa não acede sequer ao link do jornal), na comunicação em três etapas preconizada pela página Facebook do partido, o cartaz sobressai, veiculando a mensagem dominante com a qual os seguidores da página irão estabelecer um debate através da caixa de comentários e as partilhas, que por seu lado tendem a apoiar e reforçar a mensagem do cartaz.
O cartaz “Frauen werden zu Freiwild” mostra exemplarmente como o processo de comunicação da AfD envolve a tradução, reconfiguração e reinterpretação de histórias e dados que circulam nos media convencionais, que, através dos veículos de comunicação do partido como o Facebook, são reintroduzidos no espaço mediático em narrativas da extrema-direita. Este cartaz, anterior aos acontecimentos de Colónia, mostra igualmente que o funcionamento do Facebook, favorável à amplificação do impacto de imagens visuais através da caixa de comentários e das partilhas, contribui para a intensificação do pânico sexual em torno da migração e das políticas de asilo. A análise da interseção performativa entre iconografia, texto e fontes sugere assim que a própria natureza do Facebook favorece a disseminação de explicações simplistas para questões complexas e assim a promoção da narrativa da violação como crime racializado que poderia ser facilmente resolvido na Alemanha através de medidas que restringissem a imigração e restaurassem as fronteiras nacionais. Em suma, as potencialidades das redes sociais na disseminação de fake news não se limitam apenas à promoção de “factos alternativos”. Como este exemplo sugere, passam pela capacidade de impor focos e interpretações alternativas, capazes de direcionar o entendimento de problemas presentes nos debates públicos e assim redefinir as prioridades da luta política.