Este artigo faz parte de uma série de publicações da autoria da equipa de investigação do projeto DeOthering, publicada no Alice News com cadência mensal.
A Alemanha é um dos países europeus cujo partido de extrema-direita mais votado, Alternative für Deutschland (AfD), conta com um voto feminino significativo e tem elegido para postos de liderança mulheres com posturas públicas pouco habituais em meios conservadores. Pensemos em Frauke Petry, doutorada em Química, empresária de sucesso, que admitiu que o motivo do seu divórcio se devera a uma relação extraconjugal da sua parte, ou Alice Weidel, doutorada em Economia, gestora bancária e lésbica assumida. São várias as análises avançadas para explicar a adesão feminina a este projeto de extrema-direita, campo político tradicionalmente considerado hostil aos direitos das mulheres: os legados do nazismo; o racismo que costuma ser transversal a todas as identidades sexuais; as repercussões do arquivo colonial; a reação do privilégio branco a uma Europa multicultural; a supremacia branca a exibir todo o seu egoísmo e crueldade perante o drama dos refugiados/as. Argumentos semelhantes são recorrentes nos debates sobre o voto feminino noutros partidos europeus de extrema-direita, bem como nas tentativas de explicação do apoio de mulheres brancas a Trump.
Sendo o avanço de projetos ultranacionalistas um fenómeno global, é necessário alargar o debate a outros espaços e abrir o leque de explicações. Vejam-se, por exemplo, as mulheres muçulmanas que, perante as guerras, ocupações e devastação causadas pela ingerência ocidental no Médio Oriente, aderiram a diversos projetos políticos assentes no fundamentalismo religioso promotores de papéis de género rígidos. Observe-se também as mulheres hindus que, na Índia, aderiram ao Partido do Povo Indiano, sob liderança de Narendra Modi, um nacionalismo hostil ao Islão. No estudo “«Stabbing, slicing, wounding». Urban Hindu nationalism, public knife-distribution and the politics of sexual vulnerability in Mumbai, India” (in: Kirsten Campbell, Regina Mühlhäuser, Gaby Zipfel. eds. Exploring Sexual Violence in Armed Conflict. New Delhi: Zubaan books. No prelo), Atreyee Sen defende que os motivos que levaram muitas mulheres dos bairros da lata de Mumbai a apoiar o movimento não se deveriam tanto à grande narrativa ultranacionalista, mas à sensação de que o Partido respondia às suas necessidades imediatas. Dá como exemplo as cerimónias públicas de distribuição de canivetes. Sendo canivetes de pouca qualidade, a iniciativa dificilmente protegeria aquelas mulheres de violência doméstica ou de violação no espaço público; todavia, essas cerimónias traziam consigo um simbolismo capaz de despoletar sentimentos de união e de pertença a algo maior. O que atraía aquelas mulheres era a sensação de empoderamento, reforçada por outras formas de organização feminina promovidas a partir das estruturas partidárias, que se traduziam em solidariedades em situações de violência doméstica e de agressões sexuais e/ou laborais. Em suma, o Partido oferecia àquelas mulheres de meios tão desfavorecidos um sentimento de segurança perante as ameaças que atormentavam o seu quotidiano. Era ali, no discurso musculado étnico-identitário, e não nos discursos feministas pela igualdade de género (o feminismo “burguês” das classes média e alta), que encontravam resposta para os seus problemas.
Um olhar comparativo que integre casos como estes poderá sugerir que, em contextos de crise e de medo de ameaças externas, muitas mulheres aderem a programas ultranacionalistas assentes em ideais de masculinidade agressiva que se reivindica como proteção para a comunidade imaginada em termos étnico-religiosos. Na prática, trata-se de programas políticos que tendem a rejeitar certas correntes feministas que se desenvolveram a partir dos anos 70: um pensamento crítico do patriarcado, que parte do princípio de que existe uma forma de opressão que nos afeta como mulheres e que, por conseguinte, é possível reunir esforços para lutar contra essa opressão transversal a classes, nacionalidades e pertenças étnico-religiosas.
Ora, como sabemos, este pressuposto foi sempre essencialmente uma tentativa de categorização, um “essencialismo estratégico” que, como tal, desde cedo foi contestado pelo seu potencial para silenciamentos, nivelamentos e ausências. Grande parte dos debates feministas prende-se precisamente com a insuficiência deste modelo, com tantas vozes provenientes de diversos quadrantes a argumentar que, para perceber as opressões vividas pelas mulheres na sua diversidade geográfica, étnico-religiosa e socioeconómica, é preciso atender ao impacto de muitos outros fatores, ou seja, é necessário olhar para as dinâmicas e forças que se cruzam em cada situação de opressão.
Enquanto os debates feministas visam essencialmente aprofundar e ampliar a pertinência das lutas feministas, entre os/as seus/suas detratores/as é frequente serem invocados “outros fatores” para deslegitimar o feminismo, apontando-o como algo ultrapassado que apenas poderá legitimar-se quando submetido a exigências étnico-nacionais. É o caso da extrema-direita alemã. A AfD não questiona os direitos das mulheres nem critica as conquistas históricas do feminismo. O que a AfD argumenta é que o feminismo contemporâneo “se perdeu” no que o partido considera serem insignificâncias e exageros (questões LGBT, paridade salarial, ataque à família), em vez de combater o que considera serem os atuais perigos para o bem-estar das alemãs: “culturas misóginas importadas através da imigração muçulmana”. Preconizando um feminismo submetido a interesses étnico-nativistas, a AfD afirma que os projetos nacionalistas são atualmente os verdadeiros defensores das alemãs. A adesão de tantas mulheres a este tipo de argumentação revela essencialmente que veem a sua identidade política ser definida pelo que partilham com muitos homens alemães brancos (o medo e a rejeição da imigração e do Islão) e não pelo que poderão partilhar com muitas mulheres refugiadas e/ou muçulmanas (violência doméstica, discriminação laboral, assédio sexual, etc.).
As consequências desta postura já são percetíveis na Alemanha e noutros países do Norte da Europa. Num contexto de crescente islamofobia e atitudes anti-imigração, as tradicionais causas feministas (luta contra a violência de género, exigência de acesso ao espaço público) têm estado a ser progressivamente projetadas, no espaço mediático e no discurso político, para as comunidades imigrantes, sendo assim discutidas como problema derivado da imigração e invisibilizadas como questões transversais à sociedade. O resultado é o alastrar de um senso comum que considera que “entre nós” questões estruturais de desigualdade e violência de género são marginais. Os relatórios com levantamento de dados apontam para a permanência de violência de género como algo transversal a estas sociedades; no entanto, não têm conseguido desmontar a ilusão nativista que se vê reforçada pela hipervisibilização mediática de atos de violência entre pessoas associadas à imigração. Na adesão feminina à extrema-direita alemã é assim possível descortinar o cruzamento de um substrato xenófobo com uma falta de literacia mediática que seja capaz de fomentar um olhar crítico sobre as práticas de manipulação de alguma comunicação social.
O perigo da submissão das lutas femininas às agendas de extrema-direita não se esgota na sua dimensão racista e militarista. Projetos ultranacionalistas assentes em solidariedades étnico-religiosas carregam em si um potencial para a exclusão de uma profusão de categorias de mulheres. Costumam também ser marcados pela tendência de secundarizar os esforços de emancipação das mulheres e por práticas de controlo e submissão do corpo da mulher aos interesses da nação imaginada, nomeadamente como máquina reprodutora da comunidade. Num mundo marcado pelo medo de crises económicas, ecológicas e militares é preciso que os feminismos, atentos à diversidade que marca a vida das mulheres concretas, criem pontos de contacto, ações mobilizadoras, capazes de resistir a este tipo de ofensivas.