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Reflexão
Anti-Heteropatriarcado
No saber das loucas há mais mundo
Jornal de Leiria
2023-03-08
Por Sara Araújo

A felicidade nem sempre mora na fantasia romântica, em que dor e amor se confundem

Em 2016, a escritora e jornalista Alexandra Lucas Coelho escreveu um artigo a que regresso com frequência e que começava assim: “Aos 18 anos, eu achava que era pós-feminista. Trinta anos depois, sou feminista, mais a cada dia, e não será por acaso que ouço cada vez mais mulheres declararem-se feministas”.

O cumprimento de importantes bandeiras de luta e conquistas ao nível da igualdade formal terão dado razões para crer, por um instante, que uma erosão continuada do sexismo não enfrentaria resistência.

Voltando ao discurso de ALC, “se há 30 anos eu me via pós-feminista era por acreditar que os machistas estavam em extinção, evolução natural, questão de tempo. E se agora me vejo cada vez mais feminista é por verificar que, mesmo com tudo o que se fez e sabe […] o machismo soma e segue”.

A falácia do desenvolvimento, que faz corresponder progresso e igualdade nas sociedades capitalistas, produz a ilusão de que o sexismo é um vestígio do passado, resultado de uma meta por cumprir, que será alcançada sem mudanças estruturais.

Não fossem as feministas, não estaria estudada a parceria conveniente entre capitalismo e patriarcado, que responsabiliza as mulheres pelas tarefas do cuidado, ao mesmo tempo que desprestigia a esfera doméstica, naturalizando a inferioridade feminina.

As sociedades modernas precisaram de agregados familiares adequados às necessidades capitalistas. A família tradicional, nuclear e heteronormativa, é uma invenção que isolou as mulheres, fragilizando-as.

Ainda que, no Ocidente, muitas de nós se consideram mais libertadas que as mulheres africanas, nos sete anos que vivi em Moçambique vi nas redes femininas das famílias alargadas lições de resistência ao patriarcado e ao capitalismo.

Fui adolescente em Portugal numa época em que o feminismo era entendido como promotor de uma guerra de sexos fora de moda. Só mais tarde percebi que é uma arma contra a hierarquia de género, que coloca os homens numa situação de privilégio, mesmo que não façam por isso.

O ininterrupto escrutínio que recai sobre nós na expressão do desejo ou das ideias é um catalisar de inseguranças, que promove a competitividade feminina, vulnerabilizando as mulheres no seu conjunto.

“Tens que gostar de ti para ser amada”, grita-nos a mesma sociedade que nos ensina a odiar o nosso corpo, a comparar-nos por defeito, a duvidar de nós e a procurar validação em sistemas de poder enviesados, controlados por homens brancos.

O feminismo em que me revejo não grita frases feitas, revela possibilidades. Se, por um lado, desnaturaliza agressões normalizadas, por outro dá voz a alternativas silenciadas debaixo do sistema de classificação patriarcal.

A felicidade nem sempre mora na fantasia romântica, em que dor e amor se confundem. Há mais para conhecer observando para além dos rótulos.

Na sabedoria politizada das loucas, das bruxas, das mal-amadas, das histéricas, das conflituosas, das brutas, das emocionais, das frígidas, das não comíveis, das putas, das fufas, das selvagens há mapas de ser, estar e amar que os guardiões do patriarcado quiseram desqualificar. Nesses mapas está a sabedoria que liberta.


Sara Araújo é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e professora auxiliar convidada na Faculdade de Economia da mesma universidade. Doutorou-se em "Direito, Justiça e Cidadania no século XXI", com uma tese sobre pluralismo jurídico e Epistemologias do Sul. É cocoordeadora do Programa de Doutoramento em "Sociology of the State, law and justice" e co-coordenou 4 edições da Escola de Verão das Epistemologias do Sul (2016 a 2019). Fez parte da equipa de coordenação do Projeto Alice - Espelhos Estranhos Lições Imprevistas (B. S. Santos ERC Advanced Grant), hoje transformado em Programa de Investigação em Epistemologias do Sul. Pertenceu ao Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2003-2005), mantendo ainda ligações de colaboração, nomeadamente no âmbito de atividades de investigação e formação (UNIFOJ). Integrou a equipa binacional para a reforma da justiça em Moçambique (2003-2004), foi membro da equipa de investigadores/as do Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Moçambique (2005-2006) e investigadora associada do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane (2008-2010). Participou recentemente na realização de um Estudo Diagnóstico da Justiça em Timor-Leste e foi investigadora do projeto europeu ETHOS - Towards a European THeory Of juStice and fairnes. Foi coorganizadora do livro A dinâmica do pluralismo jurídico em Moçambique (2014) e publicou capítulos e artigos científicos sobre pluralismo jurídico em Moçambique e em Timor-Leste, Epistemologias do Sul e descolonização do Estado e do direito. Produziu relatórios científicos com avaliação de pares e disseminação internacional. Apostou na comunicação para além do público académico, nomeadamente através de meios audiovisuais. Tem experiência de trabalho empírico em contextos urbanos e rurais; em Portugal, Moçambique e Timor-Leste. O seu trabalho científico mais recente envolve uma dimensão comparativa entre estados membros da União Europeia e a Turquia. Organizou um elevado número de eventos científicos e, enquanto parte dos desafios lançados pela proposta das Epistemologias do Sul, desenvolveu múltiplas atividades que combinam ciência, arte e conhecimentos nascido nas lutas sociais (concertos, conferências-concerto, palcos de ecologia de saberes, performances, exposições, oficinas da UPMS, fóruns, tendas Paulo Freire, entre outros). Os seus interesses de investigação incluem o pluralismo jurídico e o Estado, o acesso à justiça, as Epistemologias do Sul e as metodologias não extractivistas. Em 2008, recebeu o prémio Agostinho da Silva, atribuído pela Academia de Ciências de Lisboa.



Conteúdo Original por Jornal de Leiria