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Reflexão
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Anti-Capitalismo
Anti-Colonialismo
A Versão Moderna da Aporia Brasileira: “Moço, Me Dê Uma Ajuda?”  
AN Original
2019-09-21
Por Rafael dos Santos da Silva

A pergunta exposta no subtítulo desse texto voltou a ser escutada facilmente nas portas de vários supermercados, e nas principais praças brasileiras. Ao ser confrontado por tal realidade, imediatamente pensei na terminologia denominada de APORIA. O termo quê dizer: sem saída, o fim de um caminho. Aporia se estabelece na mitologia grega para fazer companhia a PENIA que era por sua vez a personificação da pobreza. Mas, imediatamente sou levado a pensar também que o fim de um caminho não significa acabar... mas a imposição de quê outro caminho seja construído.

É exatamente com essa esperança que gostaria de refletir a saga da miséria que avança sobre a população brasileira materializada na expressão “me dê uma ajuda”.

Ao escutar o clamor do pobre, somos levados a refletir que a miséria, enquanto estágio agudo da pobreza consiste no lugar onde são rompidos todos os laços sociais. Ali se perde a dimensão da solidariedade e verdadeiramente o indivíduo é condenado a entregar-se à própria sorte. O senso de legalidade se desfaz diante da possibilidade da ânsia biológica. Sem dignidade, a condição de miséria confunde o sentimento de pertencimento social de classe ou étnica. O grau de vulnerabilidade conduz o extinto de sobrevivência a grau zero, tornando possível qualquer ato que garanta sobrevida. 

O miserável abandona-se no seu vazio existencial e dar-se a sua “revolução” individual.  Degradado pela a ausência de solidariedade só lhes resta o caminho – quase sem volta – do confronto, que pode ter seu início com a frase “me dê uma ajuda”. No momento em que essa expressão é utilizada, estão sendo confrontadas duas realidades distintas: de quem pode ajudar e de quem precisa ser ajudado; de quem está de pé, e de quem está a rastejar pelo caminho da indignidade. Quem pede, expõe antes que uma simples acomodação, uma afirmação evidentemente sincera, assentada na boa fé daquele que vai julgar sua atitude. Para utilizar os termos de Vitor Hugo  “o miserável vagueia pelos subterrâneos da dignidade”. Excluído do convívio ele passa a representar um estorvo que incomoda, fazendo os menos atentos ou desonestos, justificar seu estado por sua incompetência.   

Interessa-nos assim, identificar onde nasce a miséria. A origem da miséria reside na opção política. Portanto, na materialidade socialmente produzida. Manfredo Oliveira  observa que essa realidade impõe outra pergunta fundamental: qual nosso real projeto de sociedade? Essas indagações precisam estar no ponto de partida de qualquer análise do tecido humano expresso na crise social e ambiental.
Contudo, a sociologia mais atenta vai identificar na opção do modelo de mediação social as raízes das crises apresentadas acima. Tal escolha passa essencialmente pelo grau de democracia construída, ou permitida ao conjunto da sociedade. O século XX serviu de palco para a disputa de dois modelos sociais de estado. De um lado, um estado pautado na construção de instrumentos políticos, sociais e econômicos garantidores de direitos positivos. Um estado suficientemente necessário capaz de estabelecer um conjunto de intervenções de modo a promover equilíbrio entre produção material da riqueza e sua justa distribuição. O objetivo aqui se dá na procura da justa medida, ou da justiça social.

Do outro lado, tem-se o modelo de estado reduzido a função financista. A técnica passa a ser a instrumentalização dos mecanismos de intervenção, mínima para a sociedade, mas máxima para o setor produtivo. O arranjo prever um estado que acomode o maior número possível de interesses ventilados pelo mercado. De forma açodada dar-se a essa opção o substantivo “liberal” ou de “estado mínimo”, numa tentativa de manipular o conceito da economia clássica baseada no Laissez-faire.

O modelo pautado na financerização assenta sua base no crescimento ilimitado. Para usar a expressão de Manfredo Oliveria na “absolutização do Mercado”. Seus mecanismos estão nas raízes da desigualdade, pois favorecem baixa distribuição da renda e da riqueza. Constituem-se no mais nefasto projeto de extorsão social, quase sempre pautado no estelionato das atividades neofeudais. Levado a cabo, Ladislau Dowbor  alerta que tais mecanismos produzem ambientes que mais se assemelham a paraísos fiscais cimentados no parasitismo do capital improdutivo.

O modelo de financerização do capital via estado precisa reduzir o espaço político socialmente construído, ou seja; precisa sequestrar a dinâmica da democracia. Esse controle vem dia-a-dia a sofisticar suas ações de destruição do espaço democrático que caminha a passos largos para alcançar a mais completa drozinização da democracia. Reduzida a sua pequenez, a democracia conhece sua face mais simples, o processo eleitoral, onde se estabelece um campo fértil para o “fascismo social”. Boaventura Souza Santos atesta que esse cenário é caracterizado também pela manipulação midiática da sociedade, fraude eleitoral e a ascensão de uma economia extrativista baseada na neocolonização.

Em contraponto, uma sociedade forjada na democracia tende a resistir às investidas do neoliberalismo. Isso porque conhece os instrumentos essenciais para denunciar a alta concentração da riqueza resultado da financerização da economia. A capacidade de uma sociedade democrática se ancora no ethos da solidariedade, de tal forma que se fortalecem enquanto comunidade. Uma sociedade cuja democracia é o meio, não fica inerte diante do parasitismo escondido em discursos antidemocráticos, como ao que levou – recentemente - um dos filhos do presidente da República do Brasil a bravar em redes sociais que: “por vias democráticas não haverá mudanças rápidas.

A frase antidemocrática apontada acima é a outra face da nossa aporia. Como irmã siamesa ela guarda uma dimensão ontológica da expressão “me dê uma ajuda”. Ambas revelam o vazio abissal que atualmente caracteriza nossas opções sociais. A aporia em letras garrafais vai assim se desnudando até reconhecer que o Brasil está nitidamente mudando suas escolhas enquanto modelo de estado, via redução dos espaços democráticos. É evidente que estar a migrar do estado de bem-estar social para o modelo de financerização do capital, sem que tenha conhecido por completo àquele primeiro.

Para o acrisolamento da democracia, são dados passos largos em direção a um modelo pautado na segregação, no extrativismo e na concentração da riqueza. Sua redução, revela-se na rota da produção da injustiça social. É possível observar tal dinâmica nos números apresentados pelo IBGE. O instituto brasileiro é taxativo ao exclamar que 55 milhões de indivíduos estão expostos a alguma dimensão da pobreza material. Desses, 6,3 milhões estão efetivamente na condição de miséria. Outros 13 milhões estão desempregados e a reforma do trabalho já expõe 28 milhões de pessoas à condição de subutilização. Esses números tendem a piorar quando começarmos a conhecer os primeiros efeitos da desnecessária reforma da previdência.

Por isso, é urgente construir outro caminho. Mas é preciso reconhecer a aporia deste momento. Apresentar saída real e vencer o medo inercial. Tal caminho consiste em afirmar que a miséria, por ser uma condição socialmente construída, é por assim dizer um problema ético, e não técnico. Não há receita, mas estou convencido que a resposta a aporia começa pela ampliação da democracia; parar a produção de injustiças sociais, e a promover uma economia que cuide da casa comum.

Quiçá nos convençemos que a superação da aporia entre nós, passa por aceitarmos que outro caminho seja possível. O caminho que renove e amplie a democracia.


Rafael dos Santos da Silva é Professor na Universidade Federal do Ceará - UFC e Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra – UC.