A constituição da América Latina foi marcada pelas lutas e resistências dos diferentes povos originários em contraposição ao processo de expropriação das riquezas naturais e econômicas e da exploração da força de trabalho, instituído pelos colonizadores europeus e incorporado às práticas de dominação das elites locais.
Nesse cenário de opressão e violência, os povos latino-americanos buscaram desenvolver diferentes estratégias políticas e organizativas para enfrentar as atrocidades implícitas nas práticas de dominação política, econômica, cultural e epistêmica impostas pelo processo de colonização portuguesa e espanhola.
Os esforços empreendidos pelos oprimidos da América Latina, para contrapor-se ao projeto de dominação europeia e norte-americana, foram reforçados através da articulação e do fortalecimento das organizações sociais constituídas a partir das lutas sociais. Por meio da organização política, os movimentos sociais investiram em projetos educativos que desenvolvessem a consciência crítica dos trabalhadores, possibilitando a compreensão mais elaborada do contexto sócio-histórico, político e cultural em que estavam inseridos, marcados pela dominação, exclusão e opressão.
Dos movimentos sociais surgiram as experiências de educação popular, ainda na década de 1960, fundamentados nos referenciais políticos e pedagógicos da teologia da libertação e da pedagogia freireana, assim como, nos ideais marxistas, associados à problematização e ao desvelamento da realidade.
Para Freire (1987), a educação popular traz como essência a dimensão política- libertadora capaz de desenvolver nos sujeitos a capacidade de problematizar, de ampliar a compreensão do contexto em que estão inseridos e de transformação de si e do mundo, pois tomam consciência do seu papel político no processo de transformação da sociedade.
Constitui-se num projeto de educação que, ao oportunizar o encontro dos sujeitos para dialogar sobre o mundo, promove também um reencontro deles com o mundo, mediado por uma dinâmica pedagógica de releitura e reinterpretação desse contexto, desdobrando-se numa ação política de questionamento das condições de desumanização e da construção de práticas sociais associadas à luta pela libertação.
As práticas educativas instituídas a partir das contribuições da pedagogia freireana parte de uma relação dialógica e dialética com o contexto sócio-histórico e cultural dos oprimidos, constituindo numa educação tecida no e pelo diálogo sobre as experiências dos sujeitos sociais, seus saberes e concepções de vida, buscando compreender seus modos de pensar sobre o mundo.
As reflexões construídas acerca dos pressupostos teóricos e epistemológicos que fundamentam as experiências de Educação Popular demonstram que as alternativas pedagógicas construídas pelos movimentos sociais, em diálogo com os pesquisadores acadêmicos, trouxeram importantes contribuições teóricas e metodológicas que se contraponham à pedagogia clássica, assumindo o desafio de forjar projetos educativos comprometidos com a emancipação e a transformação social.
Os percursos teóricos trilhados pelos movimentos sociais na construção de diferentes projetos educativos, associados ao desenvolvimento de estratégias pedagógicas que reconheçam os saberes e as práticas sociais dos excluídos e o protagonismo dos sujeitos na produção de conhecimento, trazem um conjunto de princípios políticos e pedagógicos que se aproximam das discussões desenvolvidas por Santos (2009), através das Epistemologias do Sul e das Ecologias dos Saberes, na medida em que dialoga com as experiências sociais da população excluída e marginalizada no mundo.
De acordo com Santos (2006), as experiências sociais e políticas dos diferentes grupos sociais, que atuam nas periferias do mundo, trazem uma gama de conhecimentos associados à construção de outro modelo de sociabilidade, pautado na justiça, na solidariedade e na sustentabilidade. Desse modo, são as experiências que trazem contribuições significativas para se repensar as lutas políticas e as estratégias de emancipação social por meio da construção de projetos como alternativas ao capitalismo global.
Para Santos (2009), o processo de colonização empreendido nas regiões periféricas do mundo foi construído a partir de dispositivos de dominação política, econômica e cultural baseado na imposição de paradigmas epistêmicos pautado na negação/regulação dos modos de pensar, de se conceber o mundo, as relações sociais e culturais.
A partir dessa prática de negação e invisibilização, tanto dos conhecimentos quanto das práticas culturais dos grupos colonizados, tornou-se possível consolidar uma estratégia de dominação marcada pela imposição de valores, crenças e costumes tidos como “modernos” e “civilizados”. Tal controle ideológico foi implementando a partir da negação do “outro” e da exaltação da supremacia da cultura e do conhecimento eurocêntrico, tido como verdade e modelo a ser seguido pelos demais povos colonizados, considerados como inferiores e atrasados.
Nesse cenário, é fundamental forjar alternativas de produção do conhecimento que possam articular-se com as diferentes matrizes culturais e epistêmicas desenvolvidas pelos diferentes grupos sociais atuantes nas zonas periféricas do mundo. Percebe-se, nesse contexto, a preocupação de se dedicar à construção de outro modelo de ciência que seja capaz de articular-se com as experiências sociais construídas historicamente pelos grupos sociais marginalizados pelo pensamento científico hegemônico.
Diante dessa discussão, Santos (2009) defende a construção de outras estratégias de produção do conhecimento que prime pelo diálogo e pela integração entre os diferentes tipos de conhecimentos (científicos e não científicos), buscando evidenciar e valorizar a diversidade epistemológica que permeia as práticas sociais e políticas dos grupos sociais. Em razão disso, o autor propõe a constituição de outro paradigma de produção do conhecimento instituído a partir das “Epistemologias do Sul”.
As Epistemologias do Sul propõem a superação do paradigma científico moderno que promove a invisibilização da diversidade de experiências e conhecimentos construídos pelos diferentes grupos sociais no “sul global”, buscando instituir uma pedagogia capaz de estabelecer um diálogo intercultural entre diferentes práticas sociais com o intuito de forjar um paradigma de vida, pautado na justiça, solidariedade e respeito à diversidade (SANTOS, 2009).
A construção de outras pedagogias comprometidas com a emancipação social está associada à elaboração de projetos educativos que, subvertendo a tradição pedagógica e científica de regulação e negação dos saberes e das práticas sociais dos excluídos, possam instituir modelos pedagógicos insurgentes e que transformem as experiências dos movimentos em instrumentos políticos capazes de forjar diferentes perspectivas de interpretação e atuação no/com o mundo.
Compreendemos que as contribuições de Santos (2009) e Freire (1987) apontam novas perspectivas teóricas e metodológicas para se pensar em projetos educativos que se constituam enquanto espaço de desvelamento do mundo, através da implementação de projetos que favoreçam as trocas de experiências e a produção de conhecimentos voltados ao reconhecimento dos saberes historicamente construídos pelos grupos sociais excluídos, através das contribuições teóricas e epistemológicas da “ecologia de saberes”.
Os coletivos envolvidos na construção dos projetos de Educação Popular, inspirados nos pressupostos teóricos da pedagogia freireana (FREIRE, 1987), assumem o compromisso de forjar outras estratégias pedagógicas adequadas para se estabelecer os diálogos entre o conhecimento popular e o científico, dentro de um contexto de reciprocidade e complementaridade, reconhecendo o caráter de incompletude e de interdependência dos conhecimentos.
As experiências de educação popular, construídas em diálogo com os movimentos sociais, atuam na perspectiva de traçar caminhos teóricos e metodológicos que promovam uma ruptura com os parâmetros políticos e pedagógicos da pedagogia clássica, articulando-se com os princípios teóricos propostos pelas Epistemologias do Sul.
Nesse sentido, as experiências oportunizam aos/as educadores/as e educados/as diferentes espaços e tempos de formação e produção do conhecimento, permeados pelas trocas de experiências, os diálogos coletivos e as problematizações das práticas sociais, estabelecendo articulações entre os saberes dos diferentes grupos sociais com os conhecimentos historicamente construídos pela humanidade, na tentativa de forjar práticas de transformação social.
Referências
Elmo de Souza Lima é Doutor em Educação (UFPI), com pós-doutorado em Ciências Sociais (CES-UC). Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e coordenador adjunto do Núcleo de Pesquisa em Educação do Campo.