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SUS: 30 anos sendo comemorados com desconstitucionalização
AN Original
2019-01-02
Por Tânia Regina Krüger

O Sistema Único de Saúde – SUS – brasileiro, constitucionalizado em 1988, é resultado de luta do Movimento da Reforma Sanitária. O SUS reconhecido como uma política pública estatal, universal, gratuita e com participação da sociedade, desde a sua regulamentação, tem colidido com os projetos de governos que o submeteram as necessidades de reprodução do capital. Os avanços em relação aos direitos sociais na Constituição, tão caros as lutas democrático-populares, possuem um caráter liberal-democrático-universalista, pois expressam as contradições da sociedade, no sentido de fazer conviver as políticas estatais e universais, com as políticas de mercado.

Em 2018, quando completa 30 anos, o SUS vem sendo ferozmente dilapidado e desconstitucionalizado, por uma conjuntura em que as bases da democracia liberal agonizam no Brasil1. Mas as possíveis comemorações acontecem num momento no qual o país se confronta com um retrocesso sem precedentes no processo institucional do executivo, do legislativo e do judiciário e igualmente no campo valores sociais, vocalizados pela mídia, por algumas igrejas e por organizações da sociedade civil. Tal retrocesso é resultado de um esfacelamento da garantia dos direitos de cidadania como medida de ajuste econômico, mas que espetacularmente é divulgado pela mídia como Uma Ponte para o Futuro2, como um manifesto Brasil 200 Anos3, como sendo Um Ajuste Justo4 e ainda como O Caminho da Prosperidade - Proposta de Plano de Governo: Constitucional, Eficiente e Fraterno5. Ou seja, é uma conjuntura de desconstitucionalização que envolve diretamente Plano de Governo, organismos internacionais, Emendas Constitucionais, legislações infraconstitucionais, desfinanciamento e sucateamento dos serviços públicos, sobretudo as políticas do tripé da Seguridade Social, da educação e do trabalho..


A partir da década de 1990 a implementação do SUS foi incipiente e descontinua, pois a gestão do Estado foi marcada pela orientação neoliberal. Nela as políticas sociais e de saúde passam a ser centrais no campo do mercado e da geração de lucros para o capital (LAURELL, 2017) e, portanto, passados trinta anos de Constituição de 1988, o SUS encontra-se na contramão das propostas de Reforma Sanitária.

A desconstitucionalização do SUS, aqui também chamada de contrarreforma, está avançando de maneira considerável desde 2016, num contexto de desmonte e privatização de empresas e dos serviços públicos estatais. A perversidade dessa desconstitucionalização está acontecendo, segundo Paim (2018), de forma que os interesses privados entranhados no DNA do SUS formam uma pressão empresarial que está desarticulando o pacto social firmado em 1988, ao mesmo tempo em que este SUS que está aí ainda é muito orgânico aos interesses privados pela necessidade do setor acessar o fundo público.

As medidas de austeridade adquirem contornos dramáticos, sob o risco reduzir o SUS, a uma “atuação subordinada e subalterna, como recurso complementar ao mercado, aos mercadores de doenças e às corporações autoritárias” (MIRANDA, 2017, p. 399). Entre estas medidas destacamos o congelamento do gasto público em saúde com a Emenda Constitucional (EC 95); o modelo de Cobertura Universal da Saúde (CUS), patrocinado pela Organização Mundial da Saúde, consiste na cobertura do seguro por meio de um pacote de serviços, por pessoa e variável conforme as condições socioeconômicas, desaparecendo a figura jurídica do direito a saúde, ficando a cargo do Estado a responsabilidade pelos mais vulneráveis. Uma espécie de serviço de cobertura universal em saúde está em tramitação na proposta de criação dos Planos de Saúde Acessíveis (“populares”) e na Proposta de Emenda Constitucional 451/2014, que obriga todos os empregadores a garantirem aos empregados serviços de saúde. E o processo de desconstitucionalização do SUS continua com inúmeras alterações legislativas: a Lei Nº 13.097/2015 estabelece a permissão de exploração do capital estrangeiro nos serviços de saúde; a perspectiva integradora e abrangente da Atenção Básica no SUS se rompeu com a Portaria Nº 2.436/2017 que fez a revisão das suas diretrizes; a redução do Programa Farmácia Popular; a alteração das diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) sem ouvir a sociedade civil; o Decreto nº 9.057, de 25/05/2017, que credencia Instituições de Educação Superior para cursos de graduação à distância, sem prever tratamento diferenciado para a área da saúde; a liberação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), do Benzoato de Emamectina, um agrotóxico bastante agressivo e de elevada neurotoxicidade; a Portaria nº 3.992/2017 que reduziu de seis para dois blocos de financiamento do SUS, que fragmenta o sistema ao flexibilizar o uso das verbas na ponta.

A tendência, portanto, caminha em direção ao progressivo empobrecimento e/ou extinção dos fundamentos do SUS, devido ao contexto de favorecimento de setores do mercado por meio das iniciativas como: expansão das contratualizações do setor privado e filantrópico; expansão do mercado de planos de saúde; o repasse dos serviços públicos para gestão de empresas como as Organizações Socais; a transformação das unidades públicas em empresas como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH. Por outro lado continua o deslocamento da base social de apoio ao SUS e a cultura corporativa de direitos presente nas relações de trabalho, pois aproximadamente um quarto da população é cliente de plano privado de saúde.  As proporções de despesas públicas (42%) e privadas (58%) que em poucos percentuais oscilaram nos últimos quinze anos (BAHIA, 2018) ajudam a sustentar a evidência da não universalização.

Assim, a defesa do SUS e da Reforma Sanitária é agenda continua para os segmentos progressistas. Essa agenda pressupõe lutas conjuntas pelos direitos sociais em uma pauta comum que permita o acúmulo de forças para resistir à ofensiva do capital. Nessas lutas e no processo de gestão de um sistema de proteção social que vá para além da saúde, a população de um país só terá condições de enfrentar as possíveis crises econômicas, se tiver saúde. Garantir direitos sociais (saúde, educação, trabalho, previdência, organização, acesso a terra e habitação e a ciência e tecnologia, que no nosso entender são direitos e políticas sociais estruturantes) que respondam as necessidades socioeconômicas não cabe na atual conta do PIB, por isso um projeto de desenvolvimento nacional, com base social efetiva precisa ser contra hegemônico a política vigente. Este é o grande desafio do Brasil, não subordinar a lógica financeira às necessidades sanitárias, e nem colocar o bem-estar como um problema, mas como uma oportunidade de desenvolvimento social e de reconhecimento dos mais de 200 milhões de habitantes.


Referências

BAHIA, Ligia. Trinta anos de Sistema Único de Saúde (SUS): uma transição necessária, mas insuficiente. 01/08/2018 Artigos | CSP - Cadernos de Saúde Pública.
LAURELL, A. C. Políticas de saúde em conflito: seguro contra os sistemas públicos universais. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 24,  p. 26-68, 2016.
MIRANDA, A. S. A Reforma Sanitária encurralada? Apontamentos contextuais. Saúde debate,  Rio de Janeiro,  v. 41, n. 113, p. 385-400,  abr. 2017.
PAIM, J. S. 30 anos do SUS. Outra Saúde. Em 15 de mar. 2018. Salvador.


1 FRASER, Nancy. O fim do neoliberalismo progressista. Brasil de Fato. 27 de Janeiro de 2017.
2 MIGUEL, Luis Felipe “Estamos vivendo o capítulo brasileiro da falência global da democracia liberal”. Entrevista especial com Instituto Humanitas Unisinos On-line. Em 06/11/2018.
3 Aqui uma alusão ao documento do PMDB Uma Ponte para o Futuro. Brasília, out. 2015. Movimento "Brasil 200", lançado em 18/01/2018 e pede presidente liberal na economia e conservador nos costumes. Ver mais em https://www.brasil200.com.br/ Acesso em 05/02/2018.
4 BANCO MUNDIAL. Um Ajuste Justo - Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil. 2017
5 BOLSONARO2018. O Caminho da Prosperidade - Proposta de Plano de Governo: Constitucional, Eficiente e Fraterno. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos. 


Tânia Regina Krüger
Professora de Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina.Pesquisadora CNPq PQ2.
Cursando pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais - CES, Universidade de Coimbra.
tania.kruger@ufsc.br