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Narges Mohammadi e o Nobel para a Paz 
2023-10-18
Por Sofia José Santos, Daniela Nascimento, José Manuel Pureza

A 6 de Outubro foi atribuído a Narges Mohammadi o Prémio Nobel da Paz pelo seu trabalho de ativismo durante as últimas duas décadas, mostrando como, apesar de poder passar despercebida face à violência e ruído das armas, a resistência pelas palavras e pelas histórias é fundamental na luta pelos direitos humanos, pela liberdade e pela paz.

Antes dessa data, poucas e poucos de nós fora do Irão teriam ouvido falar de Mohammadi. A ignorância não trouxe menor comoção perante a notícia, sobretudo quando, nesse texto, fomos descobrindo a sua história. Mulher, ativista, jornalista iraniana, Narges Mohammadi tem lutado e enfrentado o regime Iraniano em prol dos direitos das mulheres com elevadíssimos custos pessoais. Mesmo estando presa em Evin, Mohammadi não se demitiu do seu ativismo nem deixou a luta pelos Direitos Humanos para trás. Não foram as cinco condenações das quais decorreram 31 anos de prisão e 154 chicotadas que a silenciaram. Não foi por estar no cárcere que quebrou ou que deixou de ter voz e de dar voz a outras vítimas ou a outras lutadoras - mesmo quando as circunstâncias de sobrevivência quase o exigiam.

Os prémios Nobel da Paz são, de facto, momentos ímpares de reconhecimento e de consciencialização de lutas, muitas vezes corajosas, e de conquistas pela paz. Mas as atribuições anuais deste prémio - que este ano celebra a  luta de Mohammadi - são também momentos políticos e de aprendizagem.O que podemos aprender a partir desta atribuição concreta do Nobel da Paz? O que podemos aprender da sua vida e da forma como a sua vida de jornalista e ativista tem corporizado o mote “Woman, Life, Freedom”?

                                           Narges Mohammadi

 

O Nobel como escolha política do que significa Paz
 

Olhando para aquela que tem sido a trajetória histórica de atribuição do Prémio Nobel da Paz, é possível notar uma tendência de abertura a um entendimento cada vez mais amplo do que significa a Paz. Se em muitas circunstâncias, sobretudo nas primeiras décadas, o comité Nobel foi reconhecendo e premiando personalidades, movimentos ou organizações diretamente envolvidos na promoção da paz no seu sentido mais restrito, de colocar fim à violência e à guerra - como são exemplos, os Capacetes Azuis das Nações Unidas em 1988, Yasser Arafat e Shimon Peres em 1994, a ONU e Kofi Annan em 2001 -, a verdade é que, recentemente, têm sido várias as ocasiões em que o mesmo Comité Nobel abraça e reconhece o contributo de movimentos e ativistas diretamente envolvidos/as na luta pela liberdade e direitos humanos como merecedores do Prémio Nobel da Paz. Isto reflete não apenas um reconhecimento e um entendimento alargado da Paz, mas também como este Prémio pode e deve, enquanto escolha política, contribuir para promover a ideia de que qualquer sociedade só estará verdadeiramente em paz quando, para além da ausência de violência direta e de guerra, outras formas de violência mais estrutural também sejam combatidas e eliminadas. A paz faz-se do respeito pela dignidade humana, dos direitos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, em todo o mundo, de justiça social e ambiental, de justiça histórica e cognitiva. E essa paz constrói-se, sobretudo, nas lutas na rua, na mobilização cidadã e ativista feita por pessoas comuns como Narges Mohammadi.

 

Grupo de pessoas a manifestarem-se em Vancouver. Fonte Albert StoynovUnsplash.

 

Os Direitos das Mulheres
 

As mulheres são o alvo primeiro e privilegiado das agressões à emancipação, à liberdade e à dignidade humana. Se a evolução do sistema internacional de proteção de Direitos Humanos nos mostra a necessidade de uma proteção sem fronteiras, também evidencia que a garantia dos direitos humanos deve ser específica e diferenciada, acautelando a particularidade das experiências e vulnerabilidades dos diferentes sujeitos - no plano jurídico, mas também político, económico e social e ancorado na vida de todos os dias. Nesse sentido, premiar Narges Mohammadi pela sua luta ativa em prol da defesa dos direitos das mulheres no Irão, vítimas da violência e opressão sistemática de um regime radical, é um apelo à luta em prol da defesa dos direitos das mulheres em todo o mundo. Sob o lema ‘Mulher, Vida, Liberdade’, sublinha-se isso mesmo: o direito à dignidade humana, à igualdade de acesso a direitos e liberdades fundamentais por parte das mulheres, o apoio à luta das mulheres pelo direito a uma vida plena e digna e a luta pela liberdade de expressão, nas suas múltiplas dimensões, incluindo a liberdade contra a contestação de regras que impõem às mulheres que cubram os seus corpos e os seus cabelos, se limitem ao espaço privado e se mantenham invisíveis. Esta mensagem é de apoio à luta das mulheres iranianas, representadas em Narges Mohammadi e em quem com ela tem lutado, mas também à luta de todas as mulheres e homens vítimas de opressão, repressão e violência física e estrutural por todo o mundo e cuja luta é entendida, e bem, como uma luta pela Paz.

Narges Mohammadi

 

Jornalismo e ativismo

Ainda que os títulos sobre o prémio identifiquem sempre Narges Mohammadi como jornalista, Mohammadi recebeu o prémio essencialmente pelo seu trabalho de ativista. Folheando as notícias - mesmo que em tabs digitais -, a  etiqueta de jornalista tende a eclipsar-se quando se fala do caminho que leva Mohammadi ao prémio. Para o trabalho de ativismo que desenvolveu, a luta nas ruas, a mobilização política, a organização política - muitas vezes em rede e em coletivos - foi fundamental. Mas também o foi a forma como comunicou politicamente.  As histórias que contou e as violências que essas histórias denunciaram, as cartas que escreveu a partir da prisão ou a compilação de entrevistas que editou no livro White Torture foram cruciais. Através destas histórias, Mohammadi conseguiu visibilizar trajetos e experiências de mulheres silenciadas e invisibilizadas, e fê-lo reconhecendo as suas subjetividades e as suas experiências diferenciadas, unindo-as e politizando-as. É este o potencial da comunicação e do storytelling politizados. Agregam, coletivizam o individual, politizam o pessoal, mobilizam, constituindo formas muito produtivas de resistência e de contra-poder. Apesar das notícias dissociarem o seu trabalho de jornalismo do de ativista, ou pelo menos não o reconhecerem amiúde como um só, o trabalho de Narges Mohammadi é, de facto,  jornalismo e ativismo num só – com todo o rigor e com toda a seriedade.

Divulgação da RSF da atribuição do Prémio Nobel da Paz a Narges Mohammadi.A 12 de Dezembro de 2022, esta mesma organização atribuiu-lhe o Prémio RSF de Coragem. Fonte Reporters without borders.

 

Ativismo e jornalismo não são necessariamente práticas distintas.O jornalismo para a paz - em que enquadramos o trabalho de Mohammadi - favorece a desconstrução de violências e opressões e promove a permanente (re)construção de uma paz positiva. Não é preciso estar em guerra para precisarmos de jornalismo para a paz. Quantas violências, estados de exceção existem em cenários de paz formal. E como precisamos do jornalismo para a paz no dia-a-dia onde quer que estejamos. É precisamente mais disto que precisamos - Narges Mohammadi e Jornalismo para a paz na e sobre Ucrânia, Rússia, Israel, Palestina e por tantas outras geografias fora. 

 

 Sofia José Santos é Professora Auxiliar de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigadora no Centro de Estudos Sociais onde coordena, jutamente com Júlia Garraio, o projeto "UNCOVER: Violência sexual nas paisagens mediáticas portuguesas", financiado pela FCT. O seu trabalho foi já publicado no European Journal of Women' Studies e Media and Communication. 

 Daniela Nascimento é Professora Associada de Relações Internacionais, com Agregação, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos Sociais onde tem desenvolvido, desde 2009, investigação sobre Estudos para a Paz, Humanitarismo e Direitos Humanos. Alguns dos seus trabalhos foram já publicados pelas editoras Springer International e Routledge e por revistas científicas, como a International Peacekeeping

 José Manuel Pureza é Professor Catedrático de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador no Centro de Estudos Sociais onde tem desenvolvido investigação sobre Teoria Crítica, Estudos para a Paz, Direito Internacional e Direitos Humanos. Atualmente, os seus interesses de investigação centram-se essencialmente em torno de perspetivas críticas de humanitarismo, construções teóricas da paz, e medo e afeto na política internacional. 


Este artigo foi escrito no âmbito das iniciativas de extensão universitária do Núcleo de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e do projeto UNCOVER: Violência sexual nas paisagens mediáticas portuguesas", financiado pela FCT (2022.03964.PTDC).